sexta-feira, 29 de abril de 2022

Uniformização e liberdade em uma distopia russa.

 

Nós – Ievguêni Zamiátin

Já ouvi chamarem este livro de avô de Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley) e 1984 (George Orwell). Eu acrescento Este Mundo Perfeito, de Ira Levin. De fato, há muitos elementos em comum, como a descrição de uma sociedade que se pretende uniforme, controlada e racional, eliminando as singularidades, e a insurgência de alguns de seus membros contra este controle. Foi escrito em 1921, lançado em 1924.

O livro não é muito bem escrito, em termos de fluxo da narrativa. O autor optou por fazer a obra em formato de diário. Cada capítulo é escrito como um registro feito pelo personagem principal em primeira pessoa nesse diário. Isso tira fluidez da história, que tem algumas interrupções bruscas que dão uma sensação de solavancos da escrita.

O romance conta a história de D-503, um matemático que vive em uma sociedade uniformizada e milimetricamente controlada em um futuro pós-apocalíptico — faz-se referência a uma Guerra dos Duzentos Anos, ao fim da qual se estabeleceu o Estado Unido. Nesse Estado todo o tempo dos cidadãos é controlado, assim como suas atividades e espaços. Todas as habitações são de vidro transparente, de modo que tudo o que se faz pode ser visto pelos outros. As pessoas não têm nomes; são identificadas por padrões alfanuméricos, como D-503, O-90, I-330. A liberdade é tida como algo nocivo e ultrapassado, somente a uniformização e o controle absolutos, com previsibilidade total, podem trazer felicidade plena.

Neste ponto o título faz sentido, pois a busca pela uniformidade completa faz apagar o “eu”, em prol de um “nós” que é o bem-estar coletivo representado pelo Estado Unido, comandado pela figura do Benfeitor, uma espécie de Grande Irmão.

D-503 é o principal responsável pela construção de uma máquina, a Integral, que vai expandir e ampliar o Estado Unido. O fato de ele ser matemático e de o livro ser narrado a partir de seu ponto de vista traz passagens interessantes, com um raciocínio orientado pela lógica formal e pela geometria. Isto me remeteu a outro livro, Planolândia de Edwin Abbott, que talvez seja metaforicamente uma distopia também, onde os personagens são polígonos em duas dimensões. (Planolândia é um livraço que recomendo muito). Em algum momento D-503 encontra I-330, que lhe mostra que há um caminho de resistência, de memória, de resgate de liberdade, e é aí que se dá o conflito da obra. Vou parar por aqui para não dar spoiler.

Nós traz a questão da uniformização, do apagamento das diferenças como parâmetro de progresso pela sociedade. A liberdade é tida como danosa, gera angústia, perturba a paz. Quando foi lançado, o livro foi visto como se referindo criticamente à organização social soviética sob Stalin, com uniformização absoluta, controle severo e vigilância extrema.

Hoje a ameaça de uniformização social e cultural não vem da União Soviética ou do comunismo. Sob uma determinada perspectiva, o mundo ocidental padroniza tudo. Todo quarto de hotel tende a ser parecido ao redor do mundo, todo saguão de aeroporto, todo restaurante chique. O padrão euro-americano chega de roldão com seus valores do que é bom, do que é aceitável, do que é moda, do que é científico, do que é higiênico, do que é certo. É preciso um esforço para buscar e encontrar a diversidade nas frestas, no que é incerto, torto, nas fronteiras, nos confins, penumbras, nos detalhes locais que cismam em resistir (sobreviver) aos ditames do Benfeitor.


sábado, 14 de novembro de 2020

Thriller psicológico ou romance pós-moderno?

 


O Mago (The Magus) – John Fowles

Conheci esse livro excelente no perfil @charleslangip no instagram, um camarada que lê muito e posta vídeos curtos falando sobre os livros. Este é um dos favoritos dele. A história se passa nos anos 1950, e o narrador-personagem, Nicholas Urfe, é um jovem inglês meio sem rumo, meio macho escroto que vai trabalhar como professor de inglês em um colégio interno numa ilha na Grécia.

Nos primeiros capítulos ele conta parte da sua vida até então, fala de suas escolhas ruins, da família meio disfuncional, de encontros amorosos desastrados pela própria toxicidade. Quando eu achei que o livro seria sobre as desventuras de um macho escroto anti-herói, quase um apanhador no campo de centeio, eis que um capítulo termina com a seguinte frase “e então começaram os mistérios”.

Essa foi a primeira de muitas inflexões na trama. Difícil comentar essas inflexões sem dar spoiler, mas muitas vezes achei que o livro ia mudar de assunto completamente. Umas vezes acertei, outras não.

Os tais “mistérios” aparecem quando Nicholas encontra um tal senhor Komchis, um milionário excêntrico, dono de uma propriedade isolada em uma parte isolada da ilha. A partir daí surge uma série de jogos psicológicos que compõem as reviravoltas da trama.

Mas mais do que isso, o livro é muito bem escrito, os personagens psicologicamente complexos, sendo revelados aos poucos, em camadas, com suas contradições e angústias muito bem colocadas.

O livro virou filme nos anos 60, com Michael Caine no papel de Nicholas e, sempre ele, Anthony Quinn como Komchis. Não vi, deve ser bom, mas duvido que seja melhor do que o livro, não só porque isso raramente acontece com qualquer livro, mas acho difícil que tenha sido possível traduzir em imagens toda a complexidade dos personagens, das relações etc. Mas deve ter ficado bonito se foi mesmo filmado em uma ilha na Grécia, rs.

Li que o próprio Fowles entendia o romance como uma espécie de desenho de Rorschach, aquele teste psicológico em que são mostradas manchas meio amorfas e cabe ao espectador (no caso, o leitor) concluir qual a forma daquele borrão. Não sei se concordo com essa comparação, pois os personagens são bem mostrados, com muitas zonas veladas ou pouco explícitas, é verdade, mas eles estão lá, e as relações estão colocadas. O final tem alguns pontos abertos, que não chegam incomodar porque o livro é em primeira pessoa, então ok não cobrir todas as perspectivas. Mas não é um livro com “final aberto”.

Este é um bom romance pós-moderno, onde os personagens têm camadas realistas, a trama traz inflexões pouco verossímeis porém realistas, com jogos psicológicos que prendem o leitor, chamando a curiosidade sem cair na trilha comum de livros de mistério. Recomendo!


quarta-feira, 13 de maio de 2020

A vida em estado de peste




A Peste - Albert Camus


Meu primeiro Camus, lido em tempos de peste.

É um livro, primeiramente, muito bem escrito. A história se passa na década de 1940, em Oran, na Argélia, então ocupada pela França. O próprio Camus era franco-argelino. A narrativa se desenvolve do ponto de vista do Dr. Bérnard Rieux, médico com algum renome, e assume uma atmosfera noir, com a descrição da cidade, do clima e de suas mudanças  (paisagem, sol, chuva, calor, frio e vento parecem fazer parte da história, eu gosto disso), e personagens meio taciturnos lembram a atmosfera de filmes dos anos 50.

A peste, inelutável no título, não chega de imediato à construção da história. Conforme vão sendo apresentados os personagens, senti ser criada uma tensão, um suspense, de quando a peste finalmente surgiria. Ela aparece quando Rieux, descrevendo o caso de um paciente a um médico mais velho seu amigo, enfrenta seu ceticismo diante de uma doença praticamente erradicada.
—Naturalmente, você sabe do que se trata, Rieux?
—Estou esperando o resultado de exames.
—Eu sei. E não preciso de exames. Passei parte de minha carreira na China, e vi alguns casos em Paris, há cerca de vinte anos. Só que na hora não se ousou dizer o nome... e depois, como disse um camarada meu ‘é impossível, todo mundo sabe que ela desapareceu do ocidente’. Sim, todo mundo sabia, menos os mortos. Vamos, Rieux, você sabe tão bem quanto eu do que se trata.
—Sim, Castel. É difícil de acreditar. Mas parece que é a peste.
Além do médico, outros personagens em torno dele vão dando sua visão e suas vivências da epidemia. Tarrou, um ex-jogador de futebol (Camus era fanático pelo esporte) que chegou a lutar na guerra civil espanhola, Rambert, um jornalista de fora que se vê sem poder sair da cidade em lockdown, e Grand, um funcionário público pouco especializado, vizinho de Cottard, este último um deprimido que Rieux vai visitar como paciente.

Não sei se foi a intenção de Camus, mas Jules Cotard foi um neurologista francês que descreveu, no século XIX, o que ficou conhecido como síndrome de Cotard, que em linhas gerais é uma espécie de delírio em que o paciente acredita que está morto, ou que está apodrecendo ou oco por dentro. Também tem o nome de delírio de negação, ou delírio niilista.
Além do ponto de vista dos personagens, há também um narrador que se coloca, trazendo informações mais genéricas sobre o clima, a geografia da cidade e as evoluções dos números de mortos pela doença. Também comenta sobre o ânimo geral da cidade, suas frustrações e expectativas frente aos desdobramentos.

Passeando pelos personagens, Camus mostra diferentes possibilidades de se lidar com a peste e com o “estado de peste” (lockdown). O estado de peste gera um isolamento total da cidade, o que é uma diferença em relação ao que estamos vivendo hoje, uma pandemia, ou seja, não se restringe a alguns lugares. Com a declaração do estado de peste, quem está fora fica fora, o que gerou um exílio, trazendo reflexões sobre o que se sente quando quem amamos está longe. Nem mesmo cartas eram permitidas, e na década de 1940, sem internet, zoom, whatsapp, satélite, só breves mensagens telegráficas (literalmente) eram permitidas. A vida se desenrolava sem aqueles que poderiam ser considerados essenciais.

Negar, tentar fugir, tentar ajudar, lucrar, são outras reações à peste que são colocadas. Não quero dar spoiler, mas a presença de um padre e sua evolução na história são muito interessantes, e as reflexões sobre o comportamento da igreja, das pessoas e de suas crenças, assim como muitos outros eventos e características do livro, remetem ao que conseguimos perceber hoje com a pandemia de COVID19.

Inicialmente aparecendo pouco em termos pessoais, gradativamente o Dr. Rieux vai se colocando. Assim como ele, a própria doença, a peste, vai aparecendo em maiores detalhes. Uma passagem que me emocionou especialmente foi a descrição de uma noite de agonia de um paciente, a febre, o sofrimento, o cuidado e o acompanhamento dos que cuidavam dele por toda a madrugada.

Assim, cada personagem vai evoluindo — não vou desenvolver aqui para não revelar muito do livro —, e a narrativa segue, entremeada com discussões sobre as expectativas em relação ao que vai ocorrer, os anúncios dos números de mortos, a criação de hospitais de campanha e campos de quarentena e isolamento.  

Outro aspecto em comum com nosso momento de pandemia é que não há muito alívio em não estar doente, pois a doença pode chegar a qualquer momento. Hoje vivemos todos sob essa tensão. Os que já tiveram e sobreviveram (a letalidade do COVID é uma fração daquela da peste) podem ser vistos como de alguma maneira “privilegiados”, mas esse alívio se dissolve quando pensamos que todos os que já se curaram podem ter pessoas queridas correndo risco. Aqui me vem a comparação com outra pandemia, a do desemprego estrutural, em que ter um emprego não é um prêmio que possa ser totalmente fruído; se muitos à sua volta estão caindo, amanhã pode ser você.

Enquanto escrevo esse texto, chega a notícia de que a COVID19 pode virar uma doença endêmica, e que por alguns anos ainda vamos ter de conviver com ela, até se misturar no rol de gripes virais a que já estamos acostumados. Nessa linha, concluo citando um parágrafo do livro, que foi usado como epígrafe em um pedido de impeachment do atual presidente da República.
A multidão festiva ignorava o que se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece, fica dezenas de anos a dormir nos móveis e nas roupas, espera com paciência nos quartos, nos porões, nas malas nos papeis, nos lençóis — e chega talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acorda seus ratos e os manda morrer numa cidade feliz.

domingo, 10 de maio de 2020

Epidemia de Peste e Redução de Desigualdade


No livro The Great Leveler - Violence and the history of Inequality (algo como A grande Niveladora - Violência e a História da Desigualdade) Walter Scheidel discorre, com dados coletados em várias fontes, sobre o poder da violência como força redutora das desigualdades. Ele aponta que os tempos de estabilidade e prosperidade sempre foram produtores de desigualdade, de concentração de renda. Os momentos históricos em que isso se reverteu — desde que se tem registro — sempre foram precedidos por grandes rupturas violentas, como guerras de mobilização em massa, grandes epidemias devastadoras, colapsos de Estados e grandes revoluções violentas. Não há registro na história de períodos de redução consistente da concentração e renda que não possam ser atribuídos a eventos de grande violência. O livro é de 2017. Na introdução ele diz que a redução de desigualdade desde o início dos anos 2000 na América Latina parece consistente, mas ainda era cedo para avaliar se duradoura. Não foi.

Comprei esse livro logo que foi lançado, mas só fui pegar agora porque a epidemia do coronavírus me despertou interesse para ouvir o que ele teria a dizer sobre os efeitos niveladores das grandes pandemias. Em um capítulo específico, Scheidel fala da redução da desigualdade nos anos da epidemia de peste na idade média. E é apenas sobre esse capítulo que trato aqui, os outros ainda não li. Essa redução de desigualdade parece ser devida à drástica redução populacional que ocorreu na época. Alguns fatos interessantes são abordados no capítulo. O primeiro é que os efeitos foram revertidos. A desigualdade voltou a crescer depois, mas foi muito depois, quando a população já voltava a crescer significativamente. Mas antes disso é preciso destacar que a peste não foi apenas uma onda de doença, mas várias ondas, desde o começo do século XIV até depois da metade do século XV. Então ela afetou várias gerações, em intensidade menor do que a primeira onda, mas ainda assim de forma significativa.

De forma geral, ali a redução da desigualdade teve a ver com o aumento dos ganhos dos trabalhadores da base. A radical redução da população mais pobre fez diminuir a oferta de mão-de-obra, cujos ganhos, por isso, aumentaram. Paralelamente a isso o preço da terra diminuiu, também por motivos de oferta/procura. Na Inglaterra chegou a haver leis impedindo que os salários aumentassem, mas era impossível cumpri-las. Os camponeses foram acusados de serem egoístas por exigirem pagamento maior.

Observou-se na época uma melhora qualitativa na dieta do campesinato. O pão, que compunha 50% da dieta, passou a menos de 25%. O consumo de carne também aumentou, proporcionalmente.

Houve muitas ondas de epidemias de peste, e certas gerações viveram duas a três epidemias. A maior parte dos registros mais precisos e preservados é na Europa, mas a peste trilhou seu caminho de morte seguindo as rotas comerciais da Ásia até o mediterrâneo, e dali para toda a Europa.

Mas acho que o ponto em que o capítulo é mais interessante é quando ele fala das diferenças do comportamento da desigualdade dependendo da região. Os salários aumentaram muito na Inglaterra, onde o flagelo foi especialmente letal. Já no leste da Europa a história foi outra. Ali a servidão — já em vias de afrouxamento em outros lugares — foi introduzida nessa época. O autor conta que lá os senhores de terra tinham mais poder para fazerem as leis, e os salários não aumentaram tanto. Foram editadas normas restringindo a circulação de camponeses, o que os impedia de irem trabalhar em outro lugar que oferecesse um salário mais alto, por exemplo. Isso limitou os possíveis ganhos.

A elite egípcia, na época composta pelos islamitas mamelucos que dominavam a região, não se importava diretamente do cuidado da terra. Tinham capatazes e administradores a quem confiavam a administração das terras, e deles exigiam que tirassem lucro do cultivo. Isso, e muita repressão na base da força, garantiram que os salários não aumentassem muito, apesar da grande redução da população trabalhadora no local. Outro fator interessante foi que, como as terras no Egito precisavam de cuidado constante mais especializado (por causa do regime de cheias do Nilo), as que deixavam de ser cuidadas acabavam perdendo seu valor como terra arável, o que gerou uma queda na oferta de terras compatível coma queda na população, o que acabou sendo uma força que equilibrou os preços, evitando que o preço da mão-de-obra subisse muito em relação ao da terra.

Isso me faz concluir que mesmo que a Natureza traga uma força devastadora e equalizadora, a humanidade faz questão de retornar a seu padrão de desigualdade. E, nos locais onde os ricos têm mais poder, mesmo a incrível força niveladora de uma sucessão de epidemias de peste não é suficiente para reduzir a desigualdade de maneira significativa.

Quem, como eu, considera a desigualdade como o maior mal que assola a humanidade, e principalmente o Brasil, vê com algum pessimismo essa eficácia das elites em continuar a promover a distribuição de renda do pobre para o rico. Mas, se a mobilização coletiva das elites tem eficácia, é provável que a mobilização coletiva das massas também tenha. Se a ação coordenada das elites na Silésia conseguiu conter o aumento salarial dos camponeses, é possível que a ação coordenada dos trabalhadores e da classe média minimamente progressista também crie alguma maneira de gerar distribuição de renda. Por mais que seja difícil fazer qualquer previsão do desfecho da epidemia do COVID19, cheia de sinais apocalípticos, a mobilização do Congresso para aprovar a Lei Suplicy (mesmo que emergencial), e a retomada da discussão sobre a taxação e grandes fortunas surgem como leves indícios de que algo de genuinamente distributivo possa nascer dessa crise.

domingo, 29 de março de 2020

Colonização e Ciência

Peste & Choléra - Patrick Deville


Esse livro começou colocando logo uma dificuldade de partida; estando no original, em francês, lia com o dicionário do lado. Normalmente me viro bem em romances contemporâneos, mas este tinha um vocabulário bem mais rebuscado que o habitual. Além disso, o fluxo de ideias do autor por vezes dá uns saltos, o que dificulta a velha tática de ir deduzindo o significado de uma palavra pelo contexto. Conclusão: recorria do dicionário ao menos uma vez por página, na média. Tenho um esquema de leitura em que leio livros físicos (com dicionários idem) à noite, para evitar estimular os olhos com luz de telas antes de dormir. Então dá para ter uma ideia de que não foi rapidinho que eu consegui terminar esse livro.

Peste & choléra é um romance em forma de biografia (ou biografia em forma de romance) de Alexandre Yersin, médico suíço que ficou conhecido por descobrir a bactéria responsável pela peste bubônica, que levou seu nome: Yersinia pestis. Achei que o livro fosse girar em torno desse fato, que foi o que tornou Yersin famoso, mas a peste é apenas um detalhe em uma história riquíssima.

Yersin era órfão de pai, saiu da Suíça para estudar primeiro na Alemanha e depois na França. Como era de praxe entre as pessoas cultas na Europa do século XIX, trocava muitas cartas com seus familiares (a mãe a irmã), colegas e amigos. Pelo que entendi, Deville baseou nessa correspondência a construção do livro, além de visitas in loco aos pontos de relevância para a vida de Yersin.

A história começa quase pelo final, quando, em 1940, Yersin, já velhinho, embarca no último voo da Air France para fora do país naquele período, com os nazistas batendo à porta de Paris. A narrativa segue com alternância dos tempos, ora contando de maneira mais ou menos cronológica e sequencial a vida do pesquisador, ora trazendo momentos de sua velhice, em que as memórias ganham destaque.

Yersin era um inquieto. O contato com Pasteur, do qual se tornou um discípulo próximo (juntando-se ao que Deville chamou de “la bande des pasteuriens”), estimulou a curiosidade que ele já trazia. Trocou a perspectiva de uma vida tranquila e estável na França e no laboratório por uma vida de aventuras e descobertas as mais diversas. O cotidiano de descobertas, curiosidades e aventuras é que é o núcleo do livro, sempre a partir do ponto de vista de Yersin.

Assim como o médico, Deville descreve as descobertas, explorações e interesses de Yersin com tranquilidade. A vida repleta de aventuras contrasta com o estilo calmo e pacato da personalidade de Yersin, que não teve filhos e, aparentemente, nenhum envolvimento afetivo significativo ao longo da vida, excetuando a mãe e a irmã.

Yersin se radica no Vietnã, então parte do império colonial francês, na Indochina. Ali, naquela terra cheia de possibilidades e aberta a descobertas do colonizador, Yersin encontra um lugar para se estabelecer e se estabilizar, se mantendo constantemente desafiado.

Seus interesses vão muito além da biologia ou da medicina. Ao longo de sua vida ele parte em missões exploratórias pelo interior da Indochina, mapeando rios e montanhas, tendo contato com os povos locais. Funciona como um braço colonizador instalando lá uma filial do instituto Pasteur, fazendo amizade com os governadores-gerais, mas se mantinha afastado da política, apesar da importância que ganhava no local. No fim de sua vida, chega a desenvolver uma tábua de marés, observando as cheias e vazantes a partir de sua varanda.

Peste & choléra é um livro bonito, onde as paisagens e personagens são desvelados com cuidado, dando uma boa ideia do que são Yersin e o local que ele escolheu para viver. Outras pessoas ou outros locais não são colocados em profundidade, em consonância com o próprio Yersin, sempre muito absorvido por seus interesses, que eram muitos.

Outro fator que me faz considerar esse livro como muito bom é o fato de ter tido três efeitos importantes: me despertou interesse em saber mais sobre Yersin, deu vontade de conhecer o Vietnã, e de ler outros livros do mesmo autor. Mesmo dando esse trabalho todo de olhar o dicionário.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Uma Lição de Humildade

Resultado de imagem para a onda susan casey
A Onda - Em Busca das Gigantes do Oceano - Susan Casey(The Wave: In Pursuit of the Rogues, Freaks and Giants of the Ocean trad. Ivo Koritowsky)


Nunca pegaria esse livro para ver a capa em uma livraria. Mas ele me foi emprestado por uma pessoa muito querida, com quem já troquei vários livros, então resolvi dar uma chance, porque ela conhece meu gosto literário.

Susan Casey é uma jornalista canadense que resolve aprender tudo sobre ondas gigantes. Ondas gigantes mesmo, que passam dos 20, 25, 30m de altura - tipo um prédio de dez andares. Seu principal ponto de vista é construído a partir dos encontros e viagens que tem com os surfistas de ondas gigantes pioneiros, em especial Laird Hamilton.

Essa modalidade de surf é relativamente recente. Como é muito complicado ir nadando até chegar em uma zona de ondas desse tamanho, eles são rebocados até lá por jet skis (motos aquáticas). É o surf tow-in. É um esporte radical. Cair de uma onda gigante pode significar desde ossos quebrados até a morte, seja pelo impacto ou por afogamento. Para se ter uma ideia, os surfistas usam um colete especial de kevlar, uma espécie de colete à prova de balas, para minimizar os danos de um eventual impacto.

Além de surfistas e do meio desse esporte (cinegrafistas, meteorologistas e fotógrafos), Casey conversa também com cientistas da área. Ela chega a ir a um congresso de estudiosos de ondas gigantes. Desse encontro vale destacar a imprevisibilidade do fenômeno; não existe equação capaz de prever o tamanho de uma onda. Não é possível controlar todos os fatores para se analisar cientificamente uma onda gigante. Como todo estudo científico se baseia justamente nisso, no controle de todas as variáveis para analisar uma outra, as ondas gigantes escapam à ciência como método. Apesar disso, sabe-se que alguns fatores contribuem para sua gênese, que são o relevo submarino, os ventos e as tempestades e os movimentos das placas tectônicas.

 Até pouco tempo atrás, não sobrava muita gente para dar seus testemunhos sobre essas ondas. Os registros até os anos 80 dão conta de ondas de até 25m, e, como as equações não preveem as ondas gigantes, medições eventuais acima desse nível eram consideradas erros, e descartadas dos estudos. Mas com o avanço da tecnologia de medição e da expansão da exploração de petróleo em alto mar, esses estudos foram ganhando precisão (navegar é preciso) e o campo de pesquisa cresceu em importância.

Um dado estarrecedor: toda semana desaparecem no mar, em média, dois graneleiros (navios grandes que transportam commodities). Há ondas gigantes que partem esses navios, muitas vezes sem deixar vestígios. E que se as commodities estão em alta, mais aumenta esse risco, pois mais navios e tripulações despreparados são lançados ao mar.

As duas perspectivas, de quem lida com o mar a partir de grandes navios de transporte e de quem quer surfar as ondas, apesar de parecerem tão distantes quanto prazer e trabalho, têm um ponto de convergência: o tamanho das ondas faz tanto marinheiros como surfistas experientes se sentirem humildes. No nosso dia-a-dia urbano não percebemos o quanto dependemos de navios que trafegam por águas furiosas, nem nos deparamos tão espetacularmente com uma força de uma natureza capaz de nos esmagar. O relato envolvente de Casey sobre as gigantes do oceano é, em uma palavra, uma lição de humildade.

"... Que Leia Mais Do Que Vê Escrito."









Pode um desejo imenso
Arder no peito tanto,
Que à branda e à viva alma o fogo intenso
Lhe gaste as nódoas do terreno manto,
E purifique em tanta alteza o espírito
Com olhos imortais
Que faz que leia mais do que vê escrito
Luís Vaz de Camões



Pode Um Desejo Imenso é um romance dividido em três. A edição que li, mais nova, vem com os três juntos; O Curso das Estrelas, Pode um Desejo Imenso e À Beira-Mar, do jeito que o autor queria. No entanto, quando foram lançados pela primeira vez, separadamente, a ordem começava com o segundo, e depois o primeiro e o terceiro.

O autor, o português Frederico Lourenço, é um erudito. Helenista e especialista em Camões, ele traduziu a bíblia recentemente. Essa erudição fica patente nas inúmeras referências a poemas clássicos que aparecem na obra. Acho que o desconhecimento dessas referências, que é bem o meu caso, empobrece no geral a experiência de leitura deste livro.

Em que pese a minha falta de erudição nesse ponto, o livro é muito bom, e recomendo. Conta a história de Nuno, em três fases. Na primeira, o jovem estudante de letras de vinte e poucos anos está às voltas com decisões importantes sobre sua carreira, vida amorosa e a presença ao mesmo tempo demandante e provedora de sua mãe. Na segunda, já estabelecido profissionalmente, se depara com as frustrações de seus desejos, tanto amorosos como acadêmicos. Na terceira e última aparece uma espécie de reconciliação consigo mesmo e com o passado. De maneira muito realista, e com uma bela escolha de palavras, são mostradas as relações de Nuno com seus amigos, seu estudo e seus amores, nas numerosas idas e vindas que podem acontecer em uma vida. E também como essas relações se transformam ao longo do tempo, às vezes de maneira muito sutil.

A história flui muito bem, com muitas sutilezas. A parte mais difícil são mesmo as referências de poesia clássica que não pesquei, mas de resto vai tranquilamente. Alguns detalhes ficam implícitos, mas não chegam a ficar crípticos ou herméticos, e são desvelados sem alarde.

Lourenço não tem a genialidade e a originalidade de outros autores portugueses contemporâneos como Saramago e valter hugo mãe, nem a beleza da narrativa de Miguel de Sousa Tavares, mas esta obra combina sensibilidade, realismo e lirismo com um pouquinho de humor. Uma história bonita, um livro agradável de se ler.