Nós – Ievguêni Zamiátin
Já ouvi chamarem este livro de
avô de Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley) e 1984 (George
Orwell). Eu acrescento Este Mundo Perfeito, de Ira Levin. De fato, há
muitos elementos em comum, como a descrição de uma sociedade que se pretende
uniforme, controlada e racional, eliminando as singularidades, e a insurgência
de alguns de seus membros contra este controle. Foi escrito em 1921, lançado em 1924.
O livro não é muito bem escrito,
em termos de fluxo da narrativa. O autor optou por fazer a obra em formato de
diário. Cada capítulo é escrito como um registro feito pelo personagem
principal em primeira pessoa nesse diário. Isso tira fluidez da história, que
tem algumas interrupções bruscas que dão uma sensação de solavancos da escrita.
O romance conta a história de
D-503, um matemático que vive em uma sociedade uniformizada e milimetricamente
controlada em um futuro pós-apocalíptico — faz-se referência a uma Guerra dos
Duzentos Anos, ao fim da qual se estabeleceu o Estado Unido. Nesse Estado todo
o tempo dos cidadãos é controlado, assim como suas atividades e espaços. Todas
as habitações são de vidro transparente, de modo que tudo o que se faz pode ser
visto pelos outros. As pessoas não têm nomes; são identificadas por padrões
alfanuméricos, como D-503, O-90, I-330. A liberdade é tida como algo nocivo e
ultrapassado, somente a uniformização e o controle absolutos, com
previsibilidade total, podem trazer felicidade plena.
Neste ponto o título faz sentido,
pois a busca pela uniformidade completa faz apagar o “eu”, em prol de um “nós”
que é o bem-estar coletivo representado pelo Estado Unido, comandado pela
figura do Benfeitor, uma espécie de Grande Irmão.
D-503 é o principal responsável
pela construção de uma máquina, a Integral, que vai expandir e ampliar o Estado
Unido. O fato de ele ser matemático e de o livro ser narrado a partir de seu ponto
de vista traz passagens interessantes, com um raciocínio orientado pela lógica
formal e pela geometria. Isto me remeteu a outro livro, Planolândia de
Edwin Abbott, que talvez seja metaforicamente uma distopia também, onde os
personagens são polígonos em duas dimensões. (Planolândia é um livraço
que recomendo muito). Em algum momento D-503 encontra I-330, que lhe mostra que
há um caminho de resistência, de memória, de resgate de liberdade, e é aí que
se dá o conflito da obra. Vou parar por aqui para não dar spoiler.
Nós traz a questão da
uniformização, do apagamento das diferenças como parâmetro de progresso pela
sociedade. A liberdade é tida como danosa, gera angústia, perturba a paz. Quando
foi lançado, o livro foi visto como se referindo criticamente à organização
social soviética sob Stalin, com uniformização absoluta, controle severo e
vigilância extrema.
Hoje a ameaça de uniformização
social e cultural não vem da União Soviética ou do comunismo. Sob uma
determinada perspectiva, o mundo ocidental padroniza tudo. Todo quarto de hotel
tende a ser parecido ao redor do mundo, todo saguão de aeroporto, todo
restaurante chique. O padrão euro-americano chega de roldão com seus valores do
que é bom, do que é aceitável, do que é moda, do que é científico, do que é higiênico,
do que é certo. É preciso um esforço para buscar e encontrar a diversidade nas
frestas, no que é incerto, torto, nas fronteiras, nos confins, penumbras, nos
detalhes locais que cismam em resistir (sobreviver) aos ditames do Benfeitor.