sábado, 14 de novembro de 2020

Thriller psicológico ou romance pós-moderno?

 


O Mago (The Magus) – John Fowles

Conheci esse livro excelente no perfil @charleslangip no instagram, um camarada que lê muito e posta vídeos curtos falando sobre os livros. Este é um dos favoritos dele. A história se passa nos anos 1950, e o narrador-personagem, Nicholas Urfe, é um jovem inglês meio sem rumo, meio macho escroto que vai trabalhar como professor de inglês em um colégio interno numa ilha na Grécia.

Nos primeiros capítulos ele conta parte da sua vida até então, fala de suas escolhas ruins, da família meio disfuncional, de encontros amorosos desastrados pela própria toxicidade. Quando eu achei que o livro seria sobre as desventuras de um macho escroto anti-herói, quase um apanhador no campo de centeio, eis que um capítulo termina com a seguinte frase “e então começaram os mistérios”.

Essa foi a primeira de muitas inflexões na trama. Difícil comentar essas inflexões sem dar spoiler, mas muitas vezes achei que o livro ia mudar de assunto completamente. Umas vezes acertei, outras não.

Os tais “mistérios” aparecem quando Nicholas encontra um tal senhor Komchis, um milionário excêntrico, dono de uma propriedade isolada em uma parte isolada da ilha. A partir daí surge uma série de jogos psicológicos que compõem as reviravoltas da trama.

Mas mais do que isso, o livro é muito bem escrito, os personagens psicologicamente complexos, sendo revelados aos poucos, em camadas, com suas contradições e angústias muito bem colocadas.

O livro virou filme nos anos 60, com Michael Caine no papel de Nicholas e, sempre ele, Anthony Quinn como Komchis. Não vi, deve ser bom, mas duvido que seja melhor do que o livro, não só porque isso raramente acontece com qualquer livro, mas acho difícil que tenha sido possível traduzir em imagens toda a complexidade dos personagens, das relações etc. Mas deve ter ficado bonito se foi mesmo filmado em uma ilha na Grécia, rs.

Li que o próprio Fowles entendia o romance como uma espécie de desenho de Rorschach, aquele teste psicológico em que são mostradas manchas meio amorfas e cabe ao espectador (no caso, o leitor) concluir qual a forma daquele borrão. Não sei se concordo com essa comparação, pois os personagens são bem mostrados, com muitas zonas veladas ou pouco explícitas, é verdade, mas eles estão lá, e as relações estão colocadas. O final tem alguns pontos abertos, que não chegam incomodar porque o livro é em primeira pessoa, então ok não cobrir todas as perspectivas. Mas não é um livro com “final aberto”.

Este é um bom romance pós-moderno, onde os personagens têm camadas realistas, a trama traz inflexões pouco verossímeis porém realistas, com jogos psicológicos que prendem o leitor, chamando a curiosidade sem cair na trilha comum de livros de mistério. Recomendo!


quarta-feira, 13 de maio de 2020

A vida em estado de peste




A Peste - Albert Camus


Meu primeiro Camus, lido em tempos de peste.

É um livro, primeiramente, muito bem escrito. A história se passa na década de 1940, em Oran, na Argélia, então ocupada pela França. O próprio Camus era franco-argelino. A narrativa se desenvolve do ponto de vista do Dr. Bérnard Rieux, médico com algum renome, e assume uma atmosfera noir, com a descrição da cidade, do clima e de suas mudanças  (paisagem, sol, chuva, calor, frio e vento parecem fazer parte da história, eu gosto disso), e personagens meio taciturnos lembram a atmosfera de filmes dos anos 50.

A peste, inelutável no título, não chega de imediato à construção da história. Conforme vão sendo apresentados os personagens, senti ser criada uma tensão, um suspense, de quando a peste finalmente surgiria. Ela aparece quando Rieux, descrevendo o caso de um paciente a um médico mais velho seu amigo, enfrenta seu ceticismo diante de uma doença praticamente erradicada.
—Naturalmente, você sabe do que se trata, Rieux?
—Estou esperando o resultado de exames.
—Eu sei. E não preciso de exames. Passei parte de minha carreira na China, e vi alguns casos em Paris, há cerca de vinte anos. Só que na hora não se ousou dizer o nome... e depois, como disse um camarada meu ‘é impossível, todo mundo sabe que ela desapareceu do ocidente’. Sim, todo mundo sabia, menos os mortos. Vamos, Rieux, você sabe tão bem quanto eu do que se trata.
—Sim, Castel. É difícil de acreditar. Mas parece que é a peste.
Além do médico, outros personagens em torno dele vão dando sua visão e suas vivências da epidemia. Tarrou, um ex-jogador de futebol (Camus era fanático pelo esporte) que chegou a lutar na guerra civil espanhola, Rambert, um jornalista de fora que se vê sem poder sair da cidade em lockdown, e Grand, um funcionário público pouco especializado, vizinho de Cottard, este último um deprimido que Rieux vai visitar como paciente.

Não sei se foi a intenção de Camus, mas Jules Cotard foi um neurologista francês que descreveu, no século XIX, o que ficou conhecido como síndrome de Cotard, que em linhas gerais é uma espécie de delírio em que o paciente acredita que está morto, ou que está apodrecendo ou oco por dentro. Também tem o nome de delírio de negação, ou delírio niilista.
Além do ponto de vista dos personagens, há também um narrador que se coloca, trazendo informações mais genéricas sobre o clima, a geografia da cidade e as evoluções dos números de mortos pela doença. Também comenta sobre o ânimo geral da cidade, suas frustrações e expectativas frente aos desdobramentos.

Passeando pelos personagens, Camus mostra diferentes possibilidades de se lidar com a peste e com o “estado de peste” (lockdown). O estado de peste gera um isolamento total da cidade, o que é uma diferença em relação ao que estamos vivendo hoje, uma pandemia, ou seja, não se restringe a alguns lugares. Com a declaração do estado de peste, quem está fora fica fora, o que gerou um exílio, trazendo reflexões sobre o que se sente quando quem amamos está longe. Nem mesmo cartas eram permitidas, e na década de 1940, sem internet, zoom, whatsapp, satélite, só breves mensagens telegráficas (literalmente) eram permitidas. A vida se desenrolava sem aqueles que poderiam ser considerados essenciais.

Negar, tentar fugir, tentar ajudar, lucrar, são outras reações à peste que são colocadas. Não quero dar spoiler, mas a presença de um padre e sua evolução na história são muito interessantes, e as reflexões sobre o comportamento da igreja, das pessoas e de suas crenças, assim como muitos outros eventos e características do livro, remetem ao que conseguimos perceber hoje com a pandemia de COVID19.

Inicialmente aparecendo pouco em termos pessoais, gradativamente o Dr. Rieux vai se colocando. Assim como ele, a própria doença, a peste, vai aparecendo em maiores detalhes. Uma passagem que me emocionou especialmente foi a descrição de uma noite de agonia de um paciente, a febre, o sofrimento, o cuidado e o acompanhamento dos que cuidavam dele por toda a madrugada.

Assim, cada personagem vai evoluindo — não vou desenvolver aqui para não revelar muito do livro —, e a narrativa segue, entremeada com discussões sobre as expectativas em relação ao que vai ocorrer, os anúncios dos números de mortos, a criação de hospitais de campanha e campos de quarentena e isolamento.  

Outro aspecto em comum com nosso momento de pandemia é que não há muito alívio em não estar doente, pois a doença pode chegar a qualquer momento. Hoje vivemos todos sob essa tensão. Os que já tiveram e sobreviveram (a letalidade do COVID é uma fração daquela da peste) podem ser vistos como de alguma maneira “privilegiados”, mas esse alívio se dissolve quando pensamos que todos os que já se curaram podem ter pessoas queridas correndo risco. Aqui me vem a comparação com outra pandemia, a do desemprego estrutural, em que ter um emprego não é um prêmio que possa ser totalmente fruído; se muitos à sua volta estão caindo, amanhã pode ser você.

Enquanto escrevo esse texto, chega a notícia de que a COVID19 pode virar uma doença endêmica, e que por alguns anos ainda vamos ter de conviver com ela, até se misturar no rol de gripes virais a que já estamos acostumados. Nessa linha, concluo citando um parágrafo do livro, que foi usado como epígrafe em um pedido de impeachment do atual presidente da República.
A multidão festiva ignorava o que se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece, fica dezenas de anos a dormir nos móveis e nas roupas, espera com paciência nos quartos, nos porões, nas malas nos papeis, nos lençóis — e chega talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acorda seus ratos e os manda morrer numa cidade feliz.

domingo, 10 de maio de 2020

Epidemia de Peste e Redução de Desigualdade


No livro The Great Leveler - Violence and the history of Inequality (algo como A grande Niveladora - Violência e a História da Desigualdade) Walter Scheidel discorre, com dados coletados em várias fontes, sobre o poder da violência como força redutora das desigualdades. Ele aponta que os tempos de estabilidade e prosperidade sempre foram produtores de desigualdade, de concentração de renda. Os momentos históricos em que isso se reverteu — desde que se tem registro — sempre foram precedidos por grandes rupturas violentas, como guerras de mobilização em massa, grandes epidemias devastadoras, colapsos de Estados e grandes revoluções violentas. Não há registro na história de períodos de redução consistente da concentração e renda que não possam ser atribuídos a eventos de grande violência. O livro é de 2017. Na introdução ele diz que a redução de desigualdade desde o início dos anos 2000 na América Latina parece consistente, mas ainda era cedo para avaliar se duradoura. Não foi.

Comprei esse livro logo que foi lançado, mas só fui pegar agora porque a epidemia do coronavírus me despertou interesse para ouvir o que ele teria a dizer sobre os efeitos niveladores das grandes pandemias. Em um capítulo específico, Scheidel fala da redução da desigualdade nos anos da epidemia de peste na idade média. E é apenas sobre esse capítulo que trato aqui, os outros ainda não li. Essa redução de desigualdade parece ser devida à drástica redução populacional que ocorreu na época. Alguns fatos interessantes são abordados no capítulo. O primeiro é que os efeitos foram revertidos. A desigualdade voltou a crescer depois, mas foi muito depois, quando a população já voltava a crescer significativamente. Mas antes disso é preciso destacar que a peste não foi apenas uma onda de doença, mas várias ondas, desde o começo do século XIV até depois da metade do século XV. Então ela afetou várias gerações, em intensidade menor do que a primeira onda, mas ainda assim de forma significativa.

De forma geral, ali a redução da desigualdade teve a ver com o aumento dos ganhos dos trabalhadores da base. A radical redução da população mais pobre fez diminuir a oferta de mão-de-obra, cujos ganhos, por isso, aumentaram. Paralelamente a isso o preço da terra diminuiu, também por motivos de oferta/procura. Na Inglaterra chegou a haver leis impedindo que os salários aumentassem, mas era impossível cumpri-las. Os camponeses foram acusados de serem egoístas por exigirem pagamento maior.

Observou-se na época uma melhora qualitativa na dieta do campesinato. O pão, que compunha 50% da dieta, passou a menos de 25%. O consumo de carne também aumentou, proporcionalmente.

Houve muitas ondas de epidemias de peste, e certas gerações viveram duas a três epidemias. A maior parte dos registros mais precisos e preservados é na Europa, mas a peste trilhou seu caminho de morte seguindo as rotas comerciais da Ásia até o mediterrâneo, e dali para toda a Europa.

Mas acho que o ponto em que o capítulo é mais interessante é quando ele fala das diferenças do comportamento da desigualdade dependendo da região. Os salários aumentaram muito na Inglaterra, onde o flagelo foi especialmente letal. Já no leste da Europa a história foi outra. Ali a servidão — já em vias de afrouxamento em outros lugares — foi introduzida nessa época. O autor conta que lá os senhores de terra tinham mais poder para fazerem as leis, e os salários não aumentaram tanto. Foram editadas normas restringindo a circulação de camponeses, o que os impedia de irem trabalhar em outro lugar que oferecesse um salário mais alto, por exemplo. Isso limitou os possíveis ganhos.

A elite egípcia, na época composta pelos islamitas mamelucos que dominavam a região, não se importava diretamente do cuidado da terra. Tinham capatazes e administradores a quem confiavam a administração das terras, e deles exigiam que tirassem lucro do cultivo. Isso, e muita repressão na base da força, garantiram que os salários não aumentassem muito, apesar da grande redução da população trabalhadora no local. Outro fator interessante foi que, como as terras no Egito precisavam de cuidado constante mais especializado (por causa do regime de cheias do Nilo), as que deixavam de ser cuidadas acabavam perdendo seu valor como terra arável, o que gerou uma queda na oferta de terras compatível coma queda na população, o que acabou sendo uma força que equilibrou os preços, evitando que o preço da mão-de-obra subisse muito em relação ao da terra.

Isso me faz concluir que mesmo que a Natureza traga uma força devastadora e equalizadora, a humanidade faz questão de retornar a seu padrão de desigualdade. E, nos locais onde os ricos têm mais poder, mesmo a incrível força niveladora de uma sucessão de epidemias de peste não é suficiente para reduzir a desigualdade de maneira significativa.

Quem, como eu, considera a desigualdade como o maior mal que assola a humanidade, e principalmente o Brasil, vê com algum pessimismo essa eficácia das elites em continuar a promover a distribuição de renda do pobre para o rico. Mas, se a mobilização coletiva das elites tem eficácia, é provável que a mobilização coletiva das massas também tenha. Se a ação coordenada das elites na Silésia conseguiu conter o aumento salarial dos camponeses, é possível que a ação coordenada dos trabalhadores e da classe média minimamente progressista também crie alguma maneira de gerar distribuição de renda. Por mais que seja difícil fazer qualquer previsão do desfecho da epidemia do COVID19, cheia de sinais apocalípticos, a mobilização do Congresso para aprovar a Lei Suplicy (mesmo que emergencial), e a retomada da discussão sobre a taxação e grandes fortunas surgem como leves indícios de que algo de genuinamente distributivo possa nascer dessa crise.

domingo, 29 de março de 2020

Colonização e Ciência

Peste & Choléra - Patrick Deville


Esse livro começou colocando logo uma dificuldade de partida; estando no original, em francês, lia com o dicionário do lado. Normalmente me viro bem em romances contemporâneos, mas este tinha um vocabulário bem mais rebuscado que o habitual. Além disso, o fluxo de ideias do autor por vezes dá uns saltos, o que dificulta a velha tática de ir deduzindo o significado de uma palavra pelo contexto. Conclusão: recorria do dicionário ao menos uma vez por página, na média. Tenho um esquema de leitura em que leio livros físicos (com dicionários idem) à noite, para evitar estimular os olhos com luz de telas antes de dormir. Então dá para ter uma ideia de que não foi rapidinho que eu consegui terminar esse livro.

Peste & choléra é um romance em forma de biografia (ou biografia em forma de romance) de Alexandre Yersin, médico suíço que ficou conhecido por descobrir a bactéria responsável pela peste bubônica, que levou seu nome: Yersinia pestis. Achei que o livro fosse girar em torno desse fato, que foi o que tornou Yersin famoso, mas a peste é apenas um detalhe em uma história riquíssima.

Yersin era órfão de pai, saiu da Suíça para estudar primeiro na Alemanha e depois na França. Como era de praxe entre as pessoas cultas na Europa do século XIX, trocava muitas cartas com seus familiares (a mãe a irmã), colegas e amigos. Pelo que entendi, Deville baseou nessa correspondência a construção do livro, além de visitas in loco aos pontos de relevância para a vida de Yersin.

A história começa quase pelo final, quando, em 1940, Yersin, já velhinho, embarca no último voo da Air France para fora do país naquele período, com os nazistas batendo à porta de Paris. A narrativa segue com alternância dos tempos, ora contando de maneira mais ou menos cronológica e sequencial a vida do pesquisador, ora trazendo momentos de sua velhice, em que as memórias ganham destaque.

Yersin era um inquieto. O contato com Pasteur, do qual se tornou um discípulo próximo (juntando-se ao que Deville chamou de “la bande des pasteuriens”), estimulou a curiosidade que ele já trazia. Trocou a perspectiva de uma vida tranquila e estável na França e no laboratório por uma vida de aventuras e descobertas as mais diversas. O cotidiano de descobertas, curiosidades e aventuras é que é o núcleo do livro, sempre a partir do ponto de vista de Yersin.

Assim como o médico, Deville descreve as descobertas, explorações e interesses de Yersin com tranquilidade. A vida repleta de aventuras contrasta com o estilo calmo e pacato da personalidade de Yersin, que não teve filhos e, aparentemente, nenhum envolvimento afetivo significativo ao longo da vida, excetuando a mãe e a irmã.

Yersin se radica no Vietnã, então parte do império colonial francês, na Indochina. Ali, naquela terra cheia de possibilidades e aberta a descobertas do colonizador, Yersin encontra um lugar para se estabelecer e se estabilizar, se mantendo constantemente desafiado.

Seus interesses vão muito além da biologia ou da medicina. Ao longo de sua vida ele parte em missões exploratórias pelo interior da Indochina, mapeando rios e montanhas, tendo contato com os povos locais. Funciona como um braço colonizador instalando lá uma filial do instituto Pasteur, fazendo amizade com os governadores-gerais, mas se mantinha afastado da política, apesar da importância que ganhava no local. No fim de sua vida, chega a desenvolver uma tábua de marés, observando as cheias e vazantes a partir de sua varanda.

Peste & choléra é um livro bonito, onde as paisagens e personagens são desvelados com cuidado, dando uma boa ideia do que são Yersin e o local que ele escolheu para viver. Outras pessoas ou outros locais não são colocados em profundidade, em consonância com o próprio Yersin, sempre muito absorvido por seus interesses, que eram muitos.

Outro fator que me faz considerar esse livro como muito bom é o fato de ter tido três efeitos importantes: me despertou interesse em saber mais sobre Yersin, deu vontade de conhecer o Vietnã, e de ler outros livros do mesmo autor. Mesmo dando esse trabalho todo de olhar o dicionário.