sexta-feira, 29 de abril de 2022

Uniformização e liberdade em uma distopia russa.

 

Nós – Ievguêni Zamiátin

Já ouvi chamarem este livro de avô de Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley) e 1984 (George Orwell). Eu acrescento Este Mundo Perfeito, de Ira Levin. De fato, há muitos elementos em comum, como a descrição de uma sociedade que se pretende uniforme, controlada e racional, eliminando as singularidades, e a insurgência de alguns de seus membros contra este controle. Foi escrito em 1921, lançado em 1924.

O livro não é muito bem escrito, em termos de fluxo da narrativa. O autor optou por fazer a obra em formato de diário. Cada capítulo é escrito como um registro feito pelo personagem principal em primeira pessoa nesse diário. Isso tira fluidez da história, que tem algumas interrupções bruscas que dão uma sensação de solavancos da escrita.

O romance conta a história de D-503, um matemático que vive em uma sociedade uniformizada e milimetricamente controlada em um futuro pós-apocalíptico — faz-se referência a uma Guerra dos Duzentos Anos, ao fim da qual se estabeleceu o Estado Unido. Nesse Estado todo o tempo dos cidadãos é controlado, assim como suas atividades e espaços. Todas as habitações são de vidro transparente, de modo que tudo o que se faz pode ser visto pelos outros. As pessoas não têm nomes; são identificadas por padrões alfanuméricos, como D-503, O-90, I-330. A liberdade é tida como algo nocivo e ultrapassado, somente a uniformização e o controle absolutos, com previsibilidade total, podem trazer felicidade plena.

Neste ponto o título faz sentido, pois a busca pela uniformidade completa faz apagar o “eu”, em prol de um “nós” que é o bem-estar coletivo representado pelo Estado Unido, comandado pela figura do Benfeitor, uma espécie de Grande Irmão.

D-503 é o principal responsável pela construção de uma máquina, a Integral, que vai expandir e ampliar o Estado Unido. O fato de ele ser matemático e de o livro ser narrado a partir de seu ponto de vista traz passagens interessantes, com um raciocínio orientado pela lógica formal e pela geometria. Isto me remeteu a outro livro, Planolândia de Edwin Abbott, que talvez seja metaforicamente uma distopia também, onde os personagens são polígonos em duas dimensões. (Planolândia é um livraço que recomendo muito). Em algum momento D-503 encontra I-330, que lhe mostra que há um caminho de resistência, de memória, de resgate de liberdade, e é aí que se dá o conflito da obra. Vou parar por aqui para não dar spoiler.

Nós traz a questão da uniformização, do apagamento das diferenças como parâmetro de progresso pela sociedade. A liberdade é tida como danosa, gera angústia, perturba a paz. Quando foi lançado, o livro foi visto como se referindo criticamente à organização social soviética sob Stalin, com uniformização absoluta, controle severo e vigilância extrema.

Hoje a ameaça de uniformização social e cultural não vem da União Soviética ou do comunismo. Sob uma determinada perspectiva, o mundo ocidental padroniza tudo. Todo quarto de hotel tende a ser parecido ao redor do mundo, todo saguão de aeroporto, todo restaurante chique. O padrão euro-americano chega de roldão com seus valores do que é bom, do que é aceitável, do que é moda, do que é científico, do que é higiênico, do que é certo. É preciso um esforço para buscar e encontrar a diversidade nas frestas, no que é incerto, torto, nas fronteiras, nos confins, penumbras, nos detalhes locais que cismam em resistir (sobreviver) aos ditames do Benfeitor.


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