O Gigante Enterrado (The Buried Giant) – Kazuo Ishiguro
O autor ganhou o nobel de literatura em 2017 e o livro ganhou o prêmio Jabuti de melhor capa.
Depois que já havia lido o livro fui procurá-lo em uma
livraria para dar de presente, de tanto que gostei. Curiosamente, tive de
perguntar ao atendente em que prateleira estava, porque não estava em “literatura
estrangeira”. Ele falou então que estava na prateleira “fantasia”. Fiquei surpreso.
Apesar de conter elementos típicos de livros de fantasia, não se trata de um livro de fantasia, na minha opinião.
Em uma aldeia na Inglaterra medieval, um casal de velhinhos
decide sair do povoado onde vivem para encontrar o filho. Eles não lembram
direito onde o filho está, ou para onde foi, ou nem mesmo têm certeza de que de
fato tiveram esse filho. Logo nas primeiras páginas aparece o que eles chamam
de “bruma”. As memórias, mesmo as mais importantes, são falhas, vagas, ninguém
consegue dizer com exatidão o que ocorreu no passado distante. A vida é tocada
baseada em costumes do dia a dia e no aqui e agora.
Segue-se então uma espécie de road movie medieval, com os velhinhos passando por aldeias e
situações em que têm de lidar com desconfiança por serem de outro lugar, com a
questão da rixa entre saxões e normandos.
A bruma está sempre presente, é uma espécie de personagem
também. Ao longo do livro a bruma vai sendo revelada e explicada aos poucos.
Logo no início eles precisam passar pelo Gigante Enterrado, uma espécie de
colina, sobre a qual não se deve permanecer muito tempo.
Comentei com um amigo que estava lendo esse livro, já faz um
ano. Ele me disse, “ah, que legal, eu gosto de literatura japonesa”. Isso me trouxe
um estranhamento, nunca tinha pensado o Ishiguro como literatura japonesa,
sempre foi britânico na minha cabeça. Mas ele é nipo-britânico, eu sabia. Sua obra
é que nunca me soara tipicamente japonesa. Eu não li literatura japonesa para
opinar o quanto de japonês há em Ishiguro — na verdade nem li tanto Ishiguro,
só O Gigante... e vi os filmes baseados em Vestígios do Dia e Não Me Abandone
Jamais —, mas depois desse comentário passei a pensar no que haveria de comum
entre a “britanidade” e a “niponidade”, se é que isso existe. Imagino que haja
talvez em comum uma certa reserva, um retraimento, uma dificuldade em falar dos
próprios sentimentos, de se expor. Talvez o tradicional recato inglês e a
vergonha japonesa tenham uma faixa de interseção. Enterrar o gigante pode ser uma estratégia para lidar com grandes problemas, desde que não se leve
muito tempo passando sobre ele.
Fica difícil contar mais sobre o livro sem fazer spoiler, mas durante a viagem os
velhinhos, Axl e Beatrice, vão se deparando com reflexões sobre a própria vida
e a própria história, repensando posições sobre si mesmos a partir das
situações vividas ao longo do caminho e a partir dos encontros que têm.
O que o organizador ou organizadora da livraria classificou
como um livro de fantasia se mostra uma narrativa muito bem escrita, sensível, sobre
relações humanas, amor, memória e perdão. Se alguém me perguntasse se seria
melhor enterrar um gigante ou lidar com ele, antes de ler o livro, provavelmente, eu responderia que o melhor seria lidar com ele, reconhecê-lo. Ishiguro
mostrou, no entanto, que há situações em que enterrar é o melhor que podemos
fazer, e não deixa de ser uma maneira de lidar com o gigante, tendo o cuidado
de não permanecer muito tempo perto dele.
A memória humana não é um armazém, ou um hard disk onde os fatos ficam gravados, registrados para sempre de um mesmo jeito. Ela é o tempo todo destruída e reconstruída, modulada mais por
sentimentos do que por fatos, e por toda uma história subjetiva. Uma história que não é linear,
que não se passa como filme, como perspectiva numa pintura renascentista, onde os pontos são
hierarquizados, mas como um afresco, todos os elementos em um só plano. O tempo
todo contada e recontada, nunca da mesma forma. Se perdoar é não guardar mágoa
do passado, é dar ao outro e a si a chance de agir de outra maneira, o perdão torna-se
então uma forma, uma ferramenta de se trabalhar a memória, de elaborar nossa história,
tornando-a menos pesada de passado e mais leve para o que vier.