quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Amor, memória e perdão.

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O Gigante Enterrado (The Buried Giant) – Kazuo Ishiguro
O autor ganhou o nobel de literatura em 2017 e o livro ganhou o prêmio Jabuti de melhor capa.


Depois que já havia lido o livro fui procurá-lo em uma livraria para dar de presente, de tanto que gostei. Curiosamente, tive de perguntar ao atendente em que prateleira estava, porque não estava em “literatura estrangeira”. Ele falou então que estava na prateleira “fantasia”. Fiquei surpreso. Apesar de conter elementos típicos de livros de fantasia, não se trata de um livro de fantasia, na minha opinião.

Em uma aldeia na Inglaterra medieval, um casal de velhinhos decide sair do povoado onde vivem para encontrar o filho. Eles não lembram direito onde o filho está, ou para onde foi, ou nem mesmo têm certeza de que de fato tiveram esse filho. Logo nas primeiras páginas aparece o que eles chamam de “bruma”. As memórias, mesmo as mais importantes, são falhas, vagas, ninguém consegue dizer com exatidão o que ocorreu no passado distante. A vida é tocada baseada em costumes do dia a dia e no aqui e agora.

Segue-se então uma espécie de road movie medieval, com os velhinhos passando por aldeias e situações em que têm de lidar com desconfiança por serem de outro lugar, com a questão da rixa entre saxões e normandos.

A bruma está sempre presente, é uma espécie de personagem também. Ao longo do livro a bruma vai sendo revelada e explicada aos poucos. Logo no início eles precisam passar pelo Gigante Enterrado, uma espécie de colina, sobre a qual não se deve permanecer muito tempo.  

Comentei com um amigo que estava lendo esse livro, já faz um ano. Ele me disse, “ah, que legal, eu gosto de literatura japonesa”. Isso me trouxe um estranhamento, nunca tinha pensado o Ishiguro como literatura japonesa, sempre foi britânico na minha cabeça. Mas ele é nipo-britânico, eu sabia. Sua obra é que nunca me soara tipicamente japonesa. Eu não li literatura japonesa para opinar o quanto de japonês há em Ishiguro — na verdade nem li tanto Ishiguro, só O Gigante... e vi os filmes baseados em Vestígios do Dia e Não Me Abandone Jamais —, mas depois desse comentário passei a pensar no que haveria de comum entre a “britanidade” e a “niponidade”, se é que isso existe. Imagino que haja talvez em comum uma certa reserva, um retraimento, uma dificuldade em falar dos próprios sentimentos, de se expor. Talvez o tradicional recato inglês e a vergonha japonesa tenham uma faixa de interseção. Enterrar o gigante pode ser uma estratégia para lidar com grandes problemas, desde que não se leve muito tempo passando sobre ele.

Fica difícil contar mais sobre o livro sem fazer spoiler, mas durante a viagem os velhinhos, Axl e Beatrice, vão se deparando com reflexões sobre a própria vida e a própria história, repensando posições sobre si mesmos a partir das situações vividas ao longo do caminho e a partir dos encontros que têm.

O que o organizador ou organizadora da livraria classificou como um livro de fantasia se mostra uma narrativa muito bem escrita, sensível, sobre relações humanas, amor, memória e perdão. Se alguém me perguntasse se seria melhor enterrar um gigante ou lidar com ele, antes de ler o livro, provavelmente, eu responderia que o melhor seria lidar com ele, reconhecê-lo. Ishiguro mostrou, no entanto, que há situações em que enterrar é o melhor que podemos fazer, e não deixa de ser uma maneira de lidar com o gigante, tendo o cuidado de não permanecer muito tempo perto dele.

A memória humana não é um armazém, ou um hard disk onde os fatos ficam gravados, registrados para sempre de um mesmo jeito. Ela é o tempo todo destruída e reconstruída, modulada mais por sentimentos do que por fatos, e por toda uma história subjetiva. Uma história que não é linear, que não se passa como filme, como perspectiva numa pintura renascentista, onde os pontos são hierarquizados, mas como um afresco, todos os elementos em um só plano. O tempo todo contada e recontada, nunca da mesma forma. Se perdoar é não guardar mágoa do passado, é dar ao outro e a si a chance de agir de outra maneira, o perdão torna-se então uma forma, uma ferramenta de se trabalhar a memória, de elaborar nossa história, tornando-a menos pesada de passado e mais leve para o que vier.

sábado, 11 de novembro de 2017

Todo Poder Aos Sovietes

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Outubro – A História da Revolução Russa (October – the Story of the Russian Revolution) China Miéville


Uma traição da tradução se coloca logo no subtítulo; story é traduzido como história. Miéville, um escritor de ficção científica, explicita já na introdução que não tem a pretensão de ser imparcial. Que seu relato tem heróis e vilões, mas que tudo o que escreveu é baseado em fatos e documentos. Não se trata, portanto, de um livro de História sobre a Revolução Russa, mas um livro que conta a estória daquela Revolução. Eu mesmo não gosto muito desse termo, mas aqui cabe perfeitamente a distinção entre estória e História.

Por essas e outras eu implico muito com tradução. Então, quando conheço a língua em que o livro foi escrito, dou meu jeito de ler no original. Este livro é muito bem escrito, mas tem muitas palavras que eu não conhecia, então recorri com frequência ao dicionário. Aprendi várias palavras novas, como protean, kerfuffle, fillip, harangue e várias outras que não lembro. Essas que citei, daqui a pouco esqueço, mas assim é a vida. Ainda assim é estranho ver falas de Lenin, do czar, discursos bolcheviques em inglês. Paciência.

O personagem principal do livro não é Lenin, nem Trotsky, nem Nicolau II. É mesmo o desenlace dos eventos políticos que se sucederam naquele período. Depois de uma introdução e de um capítulo sobre os antecedentes da Revolução, os subsequentes são divididos pelos meses, de fevereiro a outubro de 1917. O livro termina com uma espécie de epílogo onde Miéville comenta o que houve na Rússia soviética depois da Revolução – e é aqui onde ele de fato não é imparcial – além de um índice de nomes e sugestões de leitura.
A Revolução de fevereiro pôs fim ao poder absoluto do czar, e instalou um Governo Provisório que em outubro foi substituído pelo comando bolchevique dos sovietes. O grosso do livro se desenvolve nas disputas de poder e idas e vindas políticas e das massas, e como a situação foi evoluindo para a tomada bolchevique do poder em outubro.

Como a história já é conhecida, não existe spoiler, então vou correr mais solto aqui.

A Inabilidade do Czar
Um evento tão especial como uma Revolução dessas proporções, obviamente, não acontece se não houver um encadeamento de outros fatores que o tornaram possível. Um deles é, sem dúvida, a inabilidade do czar Nicolau II em minimamente entender o que se passava em seu país e com seus súditos. Maria Antonieta ( "Se não têm pão, que comam brioches.") parece engajadíssima perto do Nicolau. Ele poderia ter salvado a monarquia, a oligarquia, ou ao menos o próprio pescoço se tivesse se disposto a tomar atitudes diante dos fatos que se desdobravam sob seu nariz. Neste sentido, características da personalidade do czar foram importantes para um evento histórico que mudou o século XX.

A Criatividade no Caos
Quando cai a autoridade repressora, movimentos livres pululam por todo o império. Demandas de autonomia das regiões são constituídas (Finlândia, Ucrânia, Ossétia etc.). Houve inclusive um congresso de mulheres muçulmanas do Turcomenistão que mandou quase sessenta delegadas para Petrogrado (São Petersburgo), para levarem suas propostas sobre a sharia (lei religiosa muçulmana), poligamia (poliginia, na verdade, um homem se casando com várias mulheres) e o voto feminino. Os camponeses passaram a se organizar e a criar códigos a serem respeitados na hora de ocupar as terras dos latifundiários. Depois isso acabou se expandindo para um caos mais generalizado e violento, essa organização não conseguiu se consolidar oficialmente dentro do frágil governo provisório.

Os Avanços não são Garantidos
Mesmo depois do fim do regime autoritário do Czar, a força dos poderosos oligarcas se colocava, e mais de uma vez uma contrarrevolução conservadora foi articulada, e quase tomou o poder. Anos depois, com o fortalecimento da burocracia soviética, o governo mais uma vez se distanciou do povo em nome do qual tomou o poder, e recriou as oligarquias. Uma revolução não é apenas o momento da tomada de poder, mas também o que se faz depois disso.

O Bate-Cabeça das Esquerdas
Na minha opinião, uma imensa quantidade de sangue derramado poderia ter sido evitada se as esquerdas se dispusessem a um diálogo mais plural. Rusgas entre mencheviques e bolcheviques levaram a luta aos extremos a que se chegou com a guerra civil pós-1917. No entanto, quando se abre as portas para o diálogo com os poderosos, a chance é de que eles rapidamente capturem todo o poder político, e desvirtuem as regras do jogo a seu favor. Hoje é fácil apontar os supostos erros do passado...

A revolução começou distribuindo poder, mas acabou por concentrá-lo novamente. Corncordando com Eric Hobsbawm, tendo a considerar que o maior benefício da Revolução Russa ocorreu não naquele país nem para seu povo, mas para a Europa Ocidental. Com medo do avanço das ideias socialistas e igualitárias sobre os escombros da Europa industrializada, os americanos inundaram aqueles países de dinheiro e eles fizeram o que talvez Nicolau devesse ter feito: implantaram o Estado de bem-estar social. Governos social-democratas foram eleitos e puderam implantar educação e saúde universais, e nos anos do pós-guerra a Europa viu as desigualdades sociais diminuírem significativamente, como jamais se viu em nenhum outro período. Isso se deve a vários fatores, mas o medo de uma insurreição proletária certamente contribuiu para as ações desses governos em melhorar as condições de vida da classe trabalhadora.

Opiniões e considerações à parte, o livro é um relato emocionante - em vários momentos atinge um estilo thriller - e detalhado de um dos momentos mais conturbados da história do século XX, e que viriam a moldar toda a geopolítica ocidental por muitas décadas à frente.

“É impossível acontecer isso aqui.”

O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale) – Margaret Atwood

Este foi o primeiro romance que ouvi. Ouvi como audiolivro, no aplicativo Audible, da Amazon. Foi uma experiência muito interessante, a narração da Claire Danes é excelente. 

A versão inclui também um posfácio da autora e um ensaio sobre o livro, de autoria de Valerie Martin.

A história se passa nos EUA, em uma situação distópica em que um golpe de estado mata o presidente, metralha o Congresso e suspende a Constituição. Instala-se então uma ditadura baseada em preceitos religiosos cristãos.

O enredo se desenvolve narrado por Offred, uma aia, que conta sua história pessoal de como foi afetada pelo novo regime. Não há uma preocupação em delinear os meandros políticos desse novo regime, mas enquanto conta seu percurso ela insere aqui e ali elementos que informam sobre as mudanças. Tampouco há, um paralelismo claro entre o mundo oficial, controlado e um submundo sem regras, como em outros livros de distopias com regimes autoritários (por exemplo 1984, de George Orwell, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e Este Mundo Perfeito, de Ira Levin) .

A narrativa não é muito linear, a ordem é dada mais pelo que ela decide contar do que lembra, seja de sua posição como aia, seja da época anterior. A história toma corpo aos poucos, e vai então se construindo um fio narrativo mais consistente. Na República de Gilead – como passaram a se chamar os EUA depois da mudança de regime – as mulheres são obrigadas a se submeter a posições definidas pelos homens da elite. Há uma divisão estrita de classes e nenhuma ou pouca mobilidade entre elas. Essas classes são marcadas, entre outros aspectos, pela vestimenta prescrita; as aias usam vestidos vermelhos e as esposas, azuis. Valores cristãos puritanos como castidade, fidelidade, casamento etc. são reforçados e quem não os segue pode ser severamente punido, inclusive com a morte. Julgamentos quase teatrais, execuções e linchamentos transmitidos pela televisão completam o quadro desse regime autocrático na Terra da Liberdade.

O que mais chama a atenção no argumento do livro é que ele não é tão distante assim. Hoje está claro que movimentos de restrição de liberdade em nome de reforçar a segurança encontram muito apoio em sociedades ocidentais, talvez principalmente nos EUA, de forte tradição cristã protestante. Uma tradição proselitista que acredita ser possível impor seus próprios valores e regras de comportamento a todos os outros. Os valores bíblicos justificam a submissão da mulher. Esse proselitismo coabita com um individualismo crescente, o que talvez tenha contribuído para o grande avanço das liberdades individuais, agora sacrificadas em prol de alegada segurança.

No posfácio Atwood faz um alerta; não devemos achar que estamos livres de ditaduras ou regimes extremistas religiosos. Que uma ameaça, ou suposta ameaça à segurança pode ser usada como justificativa para a supressão de liberdades, e isso já aconteceu outras vezes na história. No Brasil, um dossiê, fabricado, detalhando uma ameaça de insurreição comunista (o Plano Cohen) foi usado por Getúlio Vargas para suprimir liberdades e instaurar um regime autoritário, fechando o Congresso. Talvez hoje no Brasil uma ideia similar tivesse amplo apoio, sustentada pelo desprezo e pelo ódio aos políticos. A ideia de não só fechar, mas metralhar o Congresso encontraria eco em boa parte dos cidadãos brasileiros.

O ensaio de Valerie Martin ressalta que Atwood não inventou nenhum valor ou ideia posto no livro. Todos eles já existem na sociedade estadunidense. Sua pena ficcional levou esses valores já existentes a um desenlace pouco imaginado na época em que o livro foi escrito, em 1984. E que, embora seja impossível se prever o futuro, seus elementos constitutivos já foram lançados no passado, e estão, portanto, colocados no presente. O futuro é História.