Esse livro começou colocando logo
uma dificuldade de partida; estando no original, em francês, lia com o
dicionário do lado. Normalmente me viro bem em romances contemporâneos, mas este
tinha um vocabulário bem mais rebuscado que o habitual. Além disso, o fluxo de
ideias do autor por vezes dá uns saltos, o que dificulta a velha tática de ir
deduzindo o significado de uma palavra pelo contexto. Conclusão: recorria do
dicionário ao menos uma vez por página, na média. Tenho um esquema de leitura
em que leio livros físicos (com dicionários idem) à noite, para evitar
estimular os olhos com luz de telas antes de dormir. Então dá para ter uma
ideia de que não foi rapidinho que eu consegui terminar esse livro.
Peste & choléra é um romance em forma de biografia (ou biografia em forma de romance) de
Alexandre Yersin, médico suíço que ficou conhecido por descobrir a bactéria
responsável pela peste bubônica, que levou seu nome: Yersinia pestis. Achei
que o livro fosse girar em torno desse fato, que foi o que tornou Yersin famoso,
mas a peste é apenas um detalhe em uma história riquíssima.
Yersin era órfão de pai, saiu da Suíça para
estudar primeiro na Alemanha e depois na França. Como era de praxe entre as pessoas cultas
na Europa do século XIX, trocava muitas cartas com seus familiares (a mãe a irmã),
colegas e amigos. Pelo que entendi, Deville baseou nessa correspondência a
construção do livro, além de visitas in loco aos pontos de relevância para a vida de Yersin.
A história começa quase pelo
final, quando, em 1940, Yersin, já velhinho, embarca no último voo da Air
France para fora do país naquele período, com os nazistas batendo à porta de
Paris. A narrativa segue com alternância dos tempos, ora contando de maneira
mais ou menos cronológica e sequencial a vida do pesquisador, ora trazendo
momentos de sua velhice, em que as memórias ganham destaque.
Yersin era um inquieto. O contato
com Pasteur, do qual se tornou um discípulo próximo (juntando-se ao que Deville
chamou de “la bande des pasteuriens”), estimulou a curiosidade que ele já
trazia. Trocou a perspectiva de uma vida tranquila e estável na França e no
laboratório por uma vida de aventuras e descobertas as mais diversas. O cotidiano
de descobertas, curiosidades e aventuras é que é o núcleo do livro, sempre a
partir do ponto de vista de Yersin.
Assim como o médico, Deville
descreve as descobertas, explorações e interesses de Yersin com tranquilidade.
A vida repleta de aventuras contrasta com o estilo calmo e pacato da
personalidade de Yersin, que não teve filhos e, aparentemente, nenhum envolvimento
afetivo significativo ao longo da vida, excetuando a mãe e a irmã.
Yersin se radica no Vietnã, então
parte do império colonial francês, na Indochina. Ali, naquela terra cheia de
possibilidades e aberta a descobertas do colonizador, Yersin encontra um lugar
para se estabelecer e se estabilizar, se mantendo constantemente desafiado.
Seus interesses vão muito além da
biologia ou da medicina. Ao longo de sua vida ele parte em missões exploratórias
pelo interior da Indochina, mapeando rios e montanhas, tendo contato com os
povos locais. Funciona como um braço colonizador instalando lá uma filial do instituto
Pasteur, fazendo amizade com os governadores-gerais, mas se mantinha afastado da política, apesar da importância que ganhava no local. No fim de sua vida, chega a desenvolver uma tábua de marés, observando as cheias e vazantes a partir de sua varanda.
Peste & choléra é um livro
bonito, onde as paisagens e personagens são desvelados com cuidado, dando uma boa
ideia do que são Yersin e o local que ele escolheu para viver. Outras pessoas
ou outros locais não são colocados em profundidade, em consonância com o próprio
Yersin, sempre muito absorvido por seus interesses, que eram muitos.
Outro fator que me faz considerar
esse livro como muito bom é o fato de ter tido três efeitos importantes: me
despertou interesse em saber mais sobre Yersin, deu vontade de conhecer o
Vietnã, e de ler outros livros do mesmo autor. Mesmo dando esse trabalho todo
de olhar o dicionário.