quarta-feira, 13 de maio de 2020

A vida em estado de peste




A Peste - Albert Camus


Meu primeiro Camus, lido em tempos de peste.

É um livro, primeiramente, muito bem escrito. A história se passa na década de 1940, em Oran, na Argélia, então ocupada pela França. O próprio Camus era franco-argelino. A narrativa se desenvolve do ponto de vista do Dr. Bérnard Rieux, médico com algum renome, e assume uma atmosfera noir, com a descrição da cidade, do clima e de suas mudanças  (paisagem, sol, chuva, calor, frio e vento parecem fazer parte da história, eu gosto disso), e personagens meio taciturnos lembram a atmosfera de filmes dos anos 50.

A peste, inelutável no título, não chega de imediato à construção da história. Conforme vão sendo apresentados os personagens, senti ser criada uma tensão, um suspense, de quando a peste finalmente surgiria. Ela aparece quando Rieux, descrevendo o caso de um paciente a um médico mais velho seu amigo, enfrenta seu ceticismo diante de uma doença praticamente erradicada.
—Naturalmente, você sabe do que se trata, Rieux?
—Estou esperando o resultado de exames.
—Eu sei. E não preciso de exames. Passei parte de minha carreira na China, e vi alguns casos em Paris, há cerca de vinte anos. Só que na hora não se ousou dizer o nome... e depois, como disse um camarada meu ‘é impossível, todo mundo sabe que ela desapareceu do ocidente’. Sim, todo mundo sabia, menos os mortos. Vamos, Rieux, você sabe tão bem quanto eu do que se trata.
—Sim, Castel. É difícil de acreditar. Mas parece que é a peste.
Além do médico, outros personagens em torno dele vão dando sua visão e suas vivências da epidemia. Tarrou, um ex-jogador de futebol (Camus era fanático pelo esporte) que chegou a lutar na guerra civil espanhola, Rambert, um jornalista de fora que se vê sem poder sair da cidade em lockdown, e Grand, um funcionário público pouco especializado, vizinho de Cottard, este último um deprimido que Rieux vai visitar como paciente.

Não sei se foi a intenção de Camus, mas Jules Cotard foi um neurologista francês que descreveu, no século XIX, o que ficou conhecido como síndrome de Cotard, que em linhas gerais é uma espécie de delírio em que o paciente acredita que está morto, ou que está apodrecendo ou oco por dentro. Também tem o nome de delírio de negação, ou delírio niilista.
Além do ponto de vista dos personagens, há também um narrador que se coloca, trazendo informações mais genéricas sobre o clima, a geografia da cidade e as evoluções dos números de mortos pela doença. Também comenta sobre o ânimo geral da cidade, suas frustrações e expectativas frente aos desdobramentos.

Passeando pelos personagens, Camus mostra diferentes possibilidades de se lidar com a peste e com o “estado de peste” (lockdown). O estado de peste gera um isolamento total da cidade, o que é uma diferença em relação ao que estamos vivendo hoje, uma pandemia, ou seja, não se restringe a alguns lugares. Com a declaração do estado de peste, quem está fora fica fora, o que gerou um exílio, trazendo reflexões sobre o que se sente quando quem amamos está longe. Nem mesmo cartas eram permitidas, e na década de 1940, sem internet, zoom, whatsapp, satélite, só breves mensagens telegráficas (literalmente) eram permitidas. A vida se desenrolava sem aqueles que poderiam ser considerados essenciais.

Negar, tentar fugir, tentar ajudar, lucrar, são outras reações à peste que são colocadas. Não quero dar spoiler, mas a presença de um padre e sua evolução na história são muito interessantes, e as reflexões sobre o comportamento da igreja, das pessoas e de suas crenças, assim como muitos outros eventos e características do livro, remetem ao que conseguimos perceber hoje com a pandemia de COVID19.

Inicialmente aparecendo pouco em termos pessoais, gradativamente o Dr. Rieux vai se colocando. Assim como ele, a própria doença, a peste, vai aparecendo em maiores detalhes. Uma passagem que me emocionou especialmente foi a descrição de uma noite de agonia de um paciente, a febre, o sofrimento, o cuidado e o acompanhamento dos que cuidavam dele por toda a madrugada.

Assim, cada personagem vai evoluindo — não vou desenvolver aqui para não revelar muito do livro —, e a narrativa segue, entremeada com discussões sobre as expectativas em relação ao que vai ocorrer, os anúncios dos números de mortos, a criação de hospitais de campanha e campos de quarentena e isolamento.  

Outro aspecto em comum com nosso momento de pandemia é que não há muito alívio em não estar doente, pois a doença pode chegar a qualquer momento. Hoje vivemos todos sob essa tensão. Os que já tiveram e sobreviveram (a letalidade do COVID é uma fração daquela da peste) podem ser vistos como de alguma maneira “privilegiados”, mas esse alívio se dissolve quando pensamos que todos os que já se curaram podem ter pessoas queridas correndo risco. Aqui me vem a comparação com outra pandemia, a do desemprego estrutural, em que ter um emprego não é um prêmio que possa ser totalmente fruído; se muitos à sua volta estão caindo, amanhã pode ser você.

Enquanto escrevo esse texto, chega a notícia de que a COVID19 pode virar uma doença endêmica, e que por alguns anos ainda vamos ter de conviver com ela, até se misturar no rol de gripes virais a que já estamos acostumados. Nessa linha, concluo citando um parágrafo do livro, que foi usado como epígrafe em um pedido de impeachment do atual presidente da República.
A multidão festiva ignorava o que se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece, fica dezenas de anos a dormir nos móveis e nas roupas, espera com paciência nos quartos, nos porões, nas malas nos papeis, nos lençóis — e chega talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acorda seus ratos e os manda morrer numa cidade feliz.

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