No livro The Great Leveler - Violence and the history of Inequality (algo como A grande Niveladora - Violência e a História da Desigualdade) Walter Scheidel
discorre, com dados coletados em várias fontes, sobre o poder da violência como
força redutora das desigualdades. Ele aponta que os tempos de estabilidade e prosperidade
sempre foram produtores de desigualdade, de concentração de renda. Os momentos
históricos em que isso se reverteu — desde que se tem registro — sempre foram precedidos por grandes rupturas violentas, como guerras de mobilização em massa, grandes epidemias
devastadoras, colapsos de Estados e grandes revoluções violentas. Não há
registro na história de períodos de redução consistente da concentração e renda
que não possam ser atribuídos a eventos de grande violência. O livro é de 2017. Na introdução ele
diz que a redução de desigualdade desde o início dos anos 2000 na América
Latina parece consistente, mas ainda era cedo para avaliar se duradoura. Não
foi.
Comprei esse livro logo que foi lançado, mas só fui pegar agora porque a epidemia do coronavírus me
despertou interesse para ouvir o que ele teria a dizer sobre os efeitos
niveladores das grandes pandemias. Em um capítulo específico, Scheidel fala da
redução da desigualdade nos anos da epidemia de peste na idade média. E é
apenas sobre esse capítulo que trato aqui, os outros ainda não li. Essa redução
de desigualdade parece ser devida à drástica redução populacional que ocorreu
na época. Alguns fatos interessantes são abordados no capítulo. O primeiro é
que os efeitos foram revertidos. A desigualdade voltou a crescer depois, mas
foi muito depois, quando a população já voltava a crescer significativamente.
Mas antes disso é preciso destacar que a peste não foi apenas uma onda de
doença, mas várias ondas, desde o começo do século XIV até depois da metade do
século XV. Então ela afetou várias gerações, em intensidade menor do que a
primeira onda, mas ainda assim de forma significativa.
De forma geral, ali a redução da
desigualdade teve a ver com o aumento dos ganhos dos trabalhadores da base. A
radical redução da população mais pobre fez diminuir a oferta de mão-de-obra,
cujos ganhos, por isso, aumentaram. Paralelamente a isso o preço da terra
diminuiu, também por motivos de oferta/procura. Na Inglaterra chegou a haver
leis impedindo que os salários aumentassem, mas era impossível cumpri-las. Os camponeses
foram acusados de serem egoístas por exigirem pagamento maior.
Observou-se na época uma melhora
qualitativa na dieta do campesinato. O pão, que compunha 50% da dieta, passou a
menos de 25%. O consumo de carne também aumentou, proporcionalmente.
Houve muitas ondas de epidemias
de peste, e certas gerações viveram duas a três epidemias. A maior parte dos
registros mais precisos e preservados é na Europa, mas a peste trilhou seu
caminho de morte seguindo as rotas comerciais da Ásia até o mediterrâneo, e
dali para toda a Europa.
Mas acho que o ponto em que o
capítulo é mais interessante é quando ele fala das diferenças do comportamento
da desigualdade dependendo da região. Os salários aumentaram muito na Inglaterra,
onde o flagelo foi especialmente letal. Já no leste da Europa a história foi
outra. Ali a servidão — já em vias de afrouxamento em outros lugares — foi
introduzida nessa época. O autor conta que lá os senhores de terra tinham mais
poder para fazerem as leis, e os salários não aumentaram tanto. Foram editadas
normas restringindo a circulação de camponeses, o que os impedia de irem
trabalhar em outro lugar que oferecesse um salário mais alto, por exemplo. Isso
limitou os possíveis ganhos.
A elite egípcia, na época
composta pelos islamitas mamelucos que dominavam a região, não se importava
diretamente do cuidado da terra. Tinham capatazes e administradores a quem
confiavam a administração das terras, e deles exigiam que tirassem lucro do cultivo.
Isso, e muita repressão na base da força, garantiram que os salários não
aumentassem muito, apesar da grande redução da população trabalhadora no local.
Outro fator interessante foi que, como as terras no Egito precisavam de cuidado
constante mais especializado (por causa do regime de cheias do Nilo), as que
deixavam de ser cuidadas acabavam perdendo seu valor como terra arável, o que
gerou uma queda na oferta de terras compatível coma queda na população, o que
acabou sendo uma força que equilibrou os preços, evitando que o preço da
mão-de-obra subisse muito em relação ao da terra.
Isso me faz concluir que mesmo
que a Natureza traga uma força devastadora e equalizadora, a humanidade faz
questão de retornar a seu padrão de desigualdade. E, nos locais onde os ricos
têm mais poder, mesmo a incrível força niveladora de uma sucessão de epidemias de
peste não é suficiente para reduzir a desigualdade de maneira significativa.
Quem, como eu, considera a desigualdade
como o maior mal que assola a humanidade, e principalmente o Brasil, vê com
algum pessimismo essa eficácia das elites em continuar a promover a
distribuição de renda do pobre para o rico. Mas, se a mobilização coletiva das
elites tem eficácia, é provável que a mobilização coletiva das massas também
tenha. Se a ação coordenada das elites na Silésia conseguiu conter o aumento
salarial dos camponeses, é possível que a ação coordenada dos trabalhadores e
da classe média minimamente progressista também crie alguma maneira de gerar
distribuição de renda. Por mais que seja difícil fazer qualquer previsão do
desfecho da epidemia do COVID19, cheia de sinais apocalípticos, a mobilização
do Congresso para aprovar a Lei Suplicy (mesmo que emergencial), e a retomada
da discussão sobre a taxação e grandes fortunas surgem como leves indícios de que algo
de genuinamente distributivo possa nascer dessa crise.
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