
Outubro – A História da Revolução Russa
(October – the Story of the Russian Revolution) China Miéville
Uma traição da tradução se coloca
logo no subtítulo; story é traduzido
como história. Miéville, um escritor de ficção científica, explicita já na
introdução que não tem a pretensão de ser imparcial. Que seu relato tem heróis
e vilões, mas que tudo o que escreveu é baseado em fatos e documentos. Não se
trata, portanto, de um livro de História sobre a Revolução Russa, mas um livro
que conta a estória daquela
Revolução. Eu mesmo não gosto muito desse termo, mas aqui cabe perfeitamente a
distinção entre estória e História.
Por essas e outras eu implico
muito com tradução. Então, quando conheço a língua em que o livro foi escrito,
dou meu jeito de ler no original. Este livro é muito bem escrito, mas tem
muitas palavras que eu não conhecia, então recorri com frequência ao
dicionário. Aprendi várias palavras novas, como protean, kerfuffle, fillip, harangue e várias outras que não lembro. Essas que citei, daqui a
pouco esqueço, mas assim é a vida. Ainda assim é estranho ver falas de Lenin,
do czar, discursos bolcheviques em inglês. Paciência.
O personagem principal do livro
não é Lenin, nem Trotsky, nem Nicolau II. É mesmo o desenlace dos eventos
políticos que se sucederam naquele período. Depois de uma introdução e de um
capítulo sobre os antecedentes da Revolução, os subsequentes são divididos
pelos meses, de fevereiro a outubro de 1917. O livro termina com uma espécie de
epílogo onde Miéville comenta o que houve na Rússia soviética depois da
Revolução – e é aqui onde ele de fato não é imparcial – além de um índice de
nomes e sugestões de leitura.
A Revolução de fevereiro pôs fim ao
poder absoluto do czar, e instalou um Governo Provisório que em outubro foi
substituído pelo comando bolchevique dos sovietes. O grosso do livro se
desenvolve nas disputas de poder e idas e vindas políticas e das massas, e como
a situação foi evoluindo para a tomada bolchevique do poder em outubro.
Como a história já é conhecida,
não existe spoiler, então vou correr
mais solto aqui.
A Inabilidade do Czar
Um evento tão especial como uma
Revolução dessas proporções, obviamente, não acontece se não houver um encadeamento
de outros fatores que o tornaram possível. Um deles é, sem dúvida, a
inabilidade do czar Nicolau II em minimamente entender o que se passava em seu
país e com seus súditos. Maria Antonieta ( "Se não têm pão, que comam brioches.") parece engajadíssima perto do Nicolau.
Ele poderia ter salvado a monarquia, a oligarquia, ou ao menos o próprio
pescoço se tivesse se disposto a tomar atitudes diante dos fatos que se
desdobravam sob seu nariz. Neste sentido, características da personalidade do czar foram importantes
para um evento histórico que mudou o século XX.
A Criatividade no Caos
Quando cai a autoridade
repressora, movimentos livres pululam por todo o império. Demandas de autonomia
das regiões são constituídas (Finlândia, Ucrânia, Ossétia etc.). Houve
inclusive um congresso de mulheres muçulmanas do Turcomenistão que mandou quase
sessenta delegadas para Petrogrado (São Petersburgo), para levarem suas
propostas sobre a sharia (lei
religiosa muçulmana), poligamia (poliginia, na verdade, um homem se casando com
várias mulheres) e o voto feminino. Os camponeses passaram a se organizar e a
criar códigos a serem respeitados na hora de ocupar as terras dos
latifundiários. Depois isso acabou se expandindo para um caos mais generalizado
e violento, essa organização não conseguiu se consolidar oficialmente dentro do
frágil governo provisório.
Os Avanços não são Garantidos
Mesmo depois do fim do regime
autoritário do Czar, a força dos poderosos oligarcas se colocava, e mais de uma
vez uma contrarrevolução conservadora foi articulada, e quase tomou o poder.
Anos depois, com o fortalecimento da burocracia soviética, o governo mais uma
vez se distanciou do povo em nome do qual tomou o poder, e recriou as
oligarquias. Uma revolução não é apenas o momento da tomada de poder, mas também
o que se faz depois disso.
O Bate-Cabeça das Esquerdas
Na minha opinião, uma imensa
quantidade de sangue derramado poderia ter sido evitada se as esquerdas se
dispusessem a um diálogo mais plural. Rusgas entre mencheviques e bolcheviques
levaram a luta aos extremos a que se chegou com a guerra civil pós-1917. No
entanto, quando se abre as portas para o diálogo com os poderosos, a chance é
de que eles rapidamente capturem todo o poder político, e desvirtuem as regras
do jogo a seu favor. Hoje é fácil apontar os supostos erros do passado...
A revolução começou distribuindo
poder, mas acabou por concentrá-lo novamente. Corncordando com Eric Hobsbawm, tendo
a considerar que o maior benefício da Revolução Russa ocorreu não naquele país
nem para seu povo, mas para a Europa Ocidental. Com medo do avanço das ideias
socialistas e igualitárias sobre os escombros da Europa industrializada, os
americanos inundaram aqueles países de dinheiro e eles fizeram o que talvez
Nicolau devesse ter feito: implantaram o Estado de bem-estar social. Governos
social-democratas foram eleitos e puderam implantar educação e saúde
universais, e nos anos do pós-guerra a Europa viu as desigualdades sociais
diminuírem significativamente, como jamais se viu em nenhum outro período. Isso
se deve a vários fatores, mas o medo de uma insurreição proletária certamente
contribuiu para as ações desses governos em melhorar as condições de vida da
classe trabalhadora.
Opiniões e considerações à parte,
o livro é um relato emocionante - em vários momentos atinge um estilo thriller - e detalhado de um dos momentos mais conturbados
da história do século XX, e que viriam a moldar toda a geopolítica ocidental
por muitas décadas à frente.
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