sábado, 11 de novembro de 2017

Todo Poder Aos Sovietes

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Outubro – A História da Revolução Russa (October – the Story of the Russian Revolution) China Miéville


Uma traição da tradução se coloca logo no subtítulo; story é traduzido como história. Miéville, um escritor de ficção científica, explicita já na introdução que não tem a pretensão de ser imparcial. Que seu relato tem heróis e vilões, mas que tudo o que escreveu é baseado em fatos e documentos. Não se trata, portanto, de um livro de História sobre a Revolução Russa, mas um livro que conta a estória daquela Revolução. Eu mesmo não gosto muito desse termo, mas aqui cabe perfeitamente a distinção entre estória e História.

Por essas e outras eu implico muito com tradução. Então, quando conheço a língua em que o livro foi escrito, dou meu jeito de ler no original. Este livro é muito bem escrito, mas tem muitas palavras que eu não conhecia, então recorri com frequência ao dicionário. Aprendi várias palavras novas, como protean, kerfuffle, fillip, harangue e várias outras que não lembro. Essas que citei, daqui a pouco esqueço, mas assim é a vida. Ainda assim é estranho ver falas de Lenin, do czar, discursos bolcheviques em inglês. Paciência.

O personagem principal do livro não é Lenin, nem Trotsky, nem Nicolau II. É mesmo o desenlace dos eventos políticos que se sucederam naquele período. Depois de uma introdução e de um capítulo sobre os antecedentes da Revolução, os subsequentes são divididos pelos meses, de fevereiro a outubro de 1917. O livro termina com uma espécie de epílogo onde Miéville comenta o que houve na Rússia soviética depois da Revolução – e é aqui onde ele de fato não é imparcial – além de um índice de nomes e sugestões de leitura.
A Revolução de fevereiro pôs fim ao poder absoluto do czar, e instalou um Governo Provisório que em outubro foi substituído pelo comando bolchevique dos sovietes. O grosso do livro se desenvolve nas disputas de poder e idas e vindas políticas e das massas, e como a situação foi evoluindo para a tomada bolchevique do poder em outubro.

Como a história já é conhecida, não existe spoiler, então vou correr mais solto aqui.

A Inabilidade do Czar
Um evento tão especial como uma Revolução dessas proporções, obviamente, não acontece se não houver um encadeamento de outros fatores que o tornaram possível. Um deles é, sem dúvida, a inabilidade do czar Nicolau II em minimamente entender o que se passava em seu país e com seus súditos. Maria Antonieta ( "Se não têm pão, que comam brioches.") parece engajadíssima perto do Nicolau. Ele poderia ter salvado a monarquia, a oligarquia, ou ao menos o próprio pescoço se tivesse se disposto a tomar atitudes diante dos fatos que se desdobravam sob seu nariz. Neste sentido, características da personalidade do czar foram importantes para um evento histórico que mudou o século XX.

A Criatividade no Caos
Quando cai a autoridade repressora, movimentos livres pululam por todo o império. Demandas de autonomia das regiões são constituídas (Finlândia, Ucrânia, Ossétia etc.). Houve inclusive um congresso de mulheres muçulmanas do Turcomenistão que mandou quase sessenta delegadas para Petrogrado (São Petersburgo), para levarem suas propostas sobre a sharia (lei religiosa muçulmana), poligamia (poliginia, na verdade, um homem se casando com várias mulheres) e o voto feminino. Os camponeses passaram a se organizar e a criar códigos a serem respeitados na hora de ocupar as terras dos latifundiários. Depois isso acabou se expandindo para um caos mais generalizado e violento, essa organização não conseguiu se consolidar oficialmente dentro do frágil governo provisório.

Os Avanços não são Garantidos
Mesmo depois do fim do regime autoritário do Czar, a força dos poderosos oligarcas se colocava, e mais de uma vez uma contrarrevolução conservadora foi articulada, e quase tomou o poder. Anos depois, com o fortalecimento da burocracia soviética, o governo mais uma vez se distanciou do povo em nome do qual tomou o poder, e recriou as oligarquias. Uma revolução não é apenas o momento da tomada de poder, mas também o que se faz depois disso.

O Bate-Cabeça das Esquerdas
Na minha opinião, uma imensa quantidade de sangue derramado poderia ter sido evitada se as esquerdas se dispusessem a um diálogo mais plural. Rusgas entre mencheviques e bolcheviques levaram a luta aos extremos a que se chegou com a guerra civil pós-1917. No entanto, quando se abre as portas para o diálogo com os poderosos, a chance é de que eles rapidamente capturem todo o poder político, e desvirtuem as regras do jogo a seu favor. Hoje é fácil apontar os supostos erros do passado...

A revolução começou distribuindo poder, mas acabou por concentrá-lo novamente. Corncordando com Eric Hobsbawm, tendo a considerar que o maior benefício da Revolução Russa ocorreu não naquele país nem para seu povo, mas para a Europa Ocidental. Com medo do avanço das ideias socialistas e igualitárias sobre os escombros da Europa industrializada, os americanos inundaram aqueles países de dinheiro e eles fizeram o que talvez Nicolau devesse ter feito: implantaram o Estado de bem-estar social. Governos social-democratas foram eleitos e puderam implantar educação e saúde universais, e nos anos do pós-guerra a Europa viu as desigualdades sociais diminuírem significativamente, como jamais se viu em nenhum outro período. Isso se deve a vários fatores, mas o medo de uma insurreição proletária certamente contribuiu para as ações desses governos em melhorar as condições de vida da classe trabalhadora.

Opiniões e considerações à parte, o livro é um relato emocionante - em vários momentos atinge um estilo thriller - e detalhado de um dos momentos mais conturbados da história do século XX, e que viriam a moldar toda a geopolítica ocidental por muitas décadas à frente.

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