
O Conto da Aia (The Handmaid’s
Tale) – Margaret Atwood
Este foi o primeiro romance que ouvi. Ouvi como audiolivro, no
aplicativo Audible, da Amazon. Foi uma experiência muito interessante, a
narração da Claire Danes é excelente.
A versão inclui também um posfácio da
autora e um ensaio sobre o livro, de autoria de Valerie Martin.
A história se passa nos EUA, em
uma situação distópica em que um golpe de estado mata o presidente, metralha o
Congresso e suspende a Constituição. Instala-se então uma ditadura baseada em
preceitos religiosos cristãos.
O enredo se desenvolve narrado
por Offred, uma aia, que conta sua história pessoal de como foi afetada pelo
novo regime. Não há uma preocupação em delinear os meandros políticos desse
novo regime, mas enquanto conta seu percurso ela insere aqui e ali elementos
que informam sobre as mudanças. Tampouco há, um
paralelismo claro entre o mundo oficial, controlado e um submundo sem regras, como em outros livros de distopias com regimes autoritários (por exemplo 1984, de George Orwell, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e Este Mundo Perfeito, de Ira Levin) .
A narrativa não é muito linear, a
ordem é dada mais pelo que ela decide contar do que lembra, seja de sua posição
como aia, seja da época anterior. A história toma corpo aos poucos, e vai então
se construindo um fio narrativo mais consistente. Na República de Gilead – como
passaram a se chamar os EUA depois da mudança de regime – as mulheres são
obrigadas a se submeter a posições definidas pelos homens da elite. Há uma divisão
estrita de classes e nenhuma ou pouca mobilidade entre elas. Essas classes são
marcadas, entre outros aspectos, pela vestimenta prescrita; as aias usam
vestidos vermelhos e as esposas, azuis. Valores cristãos puritanos como
castidade, fidelidade, casamento etc. são reforçados e quem não os segue pode
ser severamente punido, inclusive com a morte. Julgamentos quase teatrais,
execuções e linchamentos transmitidos pela televisão completam o quadro desse
regime autocrático na Terra da Liberdade.
O que mais chama a atenção no
argumento do livro é que ele não é tão distante assim. Hoje está claro que
movimentos de restrição de liberdade em nome de reforçar a segurança encontram
muito apoio em sociedades ocidentais, talvez principalmente nos EUA, de forte
tradição cristã protestante. Uma tradição proselitista que acredita ser
possível impor seus próprios valores e regras de comportamento a todos os
outros. Os valores bíblicos justificam a submissão da mulher. Esse proselitismo
coabita com um individualismo crescente, o que talvez tenha contribuído para o
grande avanço das liberdades individuais, agora sacrificadas em prol de alegada
segurança.
No posfácio Atwood faz um alerta;
não devemos achar que estamos livres de ditaduras ou regimes extremistas
religiosos. Que uma ameaça, ou suposta ameaça à segurança pode ser usada como
justificativa para a supressão de liberdades, e isso já aconteceu outras vezes
na história. No Brasil, um dossiê, fabricado, detalhando uma ameaça de
insurreição comunista (o Plano Cohen) foi usado por Getúlio Vargas para
suprimir liberdades e instaurar um regime autoritário, fechando o Congresso. Talvez hoje no Brasil uma ideia similar
tivesse amplo apoio, sustentada pelo desprezo e pelo ódio aos políticos. A ideia
de não só fechar, mas metralhar o Congresso encontraria eco em boa parte dos
cidadãos brasileiros.
O ensaio de Valerie Martin
ressalta que Atwood não inventou
nenhum valor ou ideia posto no livro. Todos eles já existem na sociedade
estadunidense. Sua pena ficcional levou esses valores já existentes a um
desenlace pouco imaginado na época em que o livro foi escrito, em 1984. E que,
embora seja impossível se prever o futuro, seus elementos constitutivos já
foram lançados no passado, e estão, portanto, colocados no presente. O futuro é
História.
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