sábado, 11 de novembro de 2017

“É impossível acontecer isso aqui.”

O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale) – Margaret Atwood

Este foi o primeiro romance que ouvi. Ouvi como audiolivro, no aplicativo Audible, da Amazon. Foi uma experiência muito interessante, a narração da Claire Danes é excelente. 

A versão inclui também um posfácio da autora e um ensaio sobre o livro, de autoria de Valerie Martin.

A história se passa nos EUA, em uma situação distópica em que um golpe de estado mata o presidente, metralha o Congresso e suspende a Constituição. Instala-se então uma ditadura baseada em preceitos religiosos cristãos.

O enredo se desenvolve narrado por Offred, uma aia, que conta sua história pessoal de como foi afetada pelo novo regime. Não há uma preocupação em delinear os meandros políticos desse novo regime, mas enquanto conta seu percurso ela insere aqui e ali elementos que informam sobre as mudanças. Tampouco há, um paralelismo claro entre o mundo oficial, controlado e um submundo sem regras, como em outros livros de distopias com regimes autoritários (por exemplo 1984, de George Orwell, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e Este Mundo Perfeito, de Ira Levin) .

A narrativa não é muito linear, a ordem é dada mais pelo que ela decide contar do que lembra, seja de sua posição como aia, seja da época anterior. A história toma corpo aos poucos, e vai então se construindo um fio narrativo mais consistente. Na República de Gilead – como passaram a se chamar os EUA depois da mudança de regime – as mulheres são obrigadas a se submeter a posições definidas pelos homens da elite. Há uma divisão estrita de classes e nenhuma ou pouca mobilidade entre elas. Essas classes são marcadas, entre outros aspectos, pela vestimenta prescrita; as aias usam vestidos vermelhos e as esposas, azuis. Valores cristãos puritanos como castidade, fidelidade, casamento etc. são reforçados e quem não os segue pode ser severamente punido, inclusive com a morte. Julgamentos quase teatrais, execuções e linchamentos transmitidos pela televisão completam o quadro desse regime autocrático na Terra da Liberdade.

O que mais chama a atenção no argumento do livro é que ele não é tão distante assim. Hoje está claro que movimentos de restrição de liberdade em nome de reforçar a segurança encontram muito apoio em sociedades ocidentais, talvez principalmente nos EUA, de forte tradição cristã protestante. Uma tradição proselitista que acredita ser possível impor seus próprios valores e regras de comportamento a todos os outros. Os valores bíblicos justificam a submissão da mulher. Esse proselitismo coabita com um individualismo crescente, o que talvez tenha contribuído para o grande avanço das liberdades individuais, agora sacrificadas em prol de alegada segurança.

No posfácio Atwood faz um alerta; não devemos achar que estamos livres de ditaduras ou regimes extremistas religiosos. Que uma ameaça, ou suposta ameaça à segurança pode ser usada como justificativa para a supressão de liberdades, e isso já aconteceu outras vezes na história. No Brasil, um dossiê, fabricado, detalhando uma ameaça de insurreição comunista (o Plano Cohen) foi usado por Getúlio Vargas para suprimir liberdades e instaurar um regime autoritário, fechando o Congresso. Talvez hoje no Brasil uma ideia similar tivesse amplo apoio, sustentada pelo desprezo e pelo ódio aos políticos. A ideia de não só fechar, mas metralhar o Congresso encontraria eco em boa parte dos cidadãos brasileiros.

O ensaio de Valerie Martin ressalta que Atwood não inventou nenhum valor ou ideia posto no livro. Todos eles já existem na sociedade estadunidense. Sua pena ficcional levou esses valores já existentes a um desenlace pouco imaginado na época em que o livro foi escrito, em 1984. E que, embora seja impossível se prever o futuro, seus elementos constitutivos já foram lançados no passado, e estão, portanto, colocados no presente. O futuro é História.

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